As aparições do Chefe Trovão.
Todo sábado à tarde, levava meu filho para as reuniões da tropa
escoteira. Ele se sentia realizado, e não aceitava faltar ou chegar atrasado. A
princípio não achei tedioso, pois, ficava por ali esperando o término e
aproveitava para ver o que faziam. Assim como eu vários pais ali também
permaneciam. O Chefe Trovão ficava quase sempre conversando conosco. Não
participava diretamente. Não era o Diretor Técnico. Eu sabia que ele era
especial, pois todos o tratavam de maneira respeitosa. Soube depois que era um
dos poucos que dirigia cursos, e conhecia como ninguém o fluxograma, o projeto
e o intento do programa escoteiro.
Tornou-se para nós um amigo e assim como os demais chefes após as
reuniões sempre nos reuníamos em casa de alguém, para conversar, bebericar uma cerveja
ou refrigerantes. Era uma reunião divertida. Com o tempo, o chefe Trovão
convenceu a todos nós a participar mais diretamente colaborando com o Grupo em
questão. Nada como experimentar. Reuniu vinte e cinco pais, e durante uma tarde
de um sábado e o dia inteiro do domingo, aplicou a todos o CAP (Curso de
Adestramento Preliminar). Foi divertido, mas logo nosso tempo aos sábados, domingos
e alguns dias da semana começaram a ser tomados, em função única e somente para
as atividades escoteiras.
Nos primeiros meses fiquei em dúvida, mas com o passar do tempo o
escotismo começou a ficar enraizado em meus pensamentos e assim como os demais
pais começamos a nos dedicar de corpo e alma ao movimento escoteiro. Fomos
mordidos pelo mosquito encantado de Baden Powell. Daí para um CAB e a parte II
da Insígnia foi um pulo. No mês de julho, estava marcado um acampamento de cinco
dias, numa pequena mata pertencente a um amigo do chefe Trovão. A Tropa Escoteira
e Sênior iriam participar. Claro que também estaríamos presente. Não iriamos
faltar. Aos poucos fomos aprendendo como preparar o material, a intendência, as
caixas de patrulhas, ou seja, tudo aquilo que os escoteiros conhecem tão bem.
Ficamos sabendo pelos outros chefes dos mitos do acampamento, e um fato nos
deixou intrigado. O chefe Trovão fazia questão que todos os chefes
participassem do banho das “três e meia” da madrugada com um “sabonete especial”
no primeiro dia de acampamento. Era uma tradição. Ninguém podia faltar. “Que
diabos” pensei. Por quê? Qual a finalidade? Como havia um respeito nato ao Chefe
Trovão não perguntamos. Vamos ver o que é e depois comentar.
No dia marcado partimos. Alegria geral. Chegamos cedo ao local. Lindo.
Uma grande lagoa tendo em volta uma pequena floresta nativa. Havia uma bela
clareira e a poucos metros acima corria um córrego com águas limpas com uma
pequena cascata. Chamada de Bica Molhada por todos que acamparam ali. Os monitores
escolheram seu campo e nós ficamos em um campo próprio não muito distantes
deles. Esqueci-me de explicar que há mais de três dias fazia um frio horroroso
em nossa cidade.
Tudo transcorreu nos conformes. À tardinha, ainda com sol, todos
se lavaram junto ao lago, e nós fomos até uma bica bem abaixo, que corria em
bambus formando uma ducha sem igual. Após o jantar, foi feito um jogo. Terminado
a reunião como os monitores, cada um foi procurar o seu canto para dormir. Já
tínhamos se esquecido de tudo e eis que o chefe Trovão nos chamou a todos
dizendo que o horário de três e meia era sagrado, não gostaria que ninguém
faltasse ou chegasse atrasado. Nesta hora foi que nos lembramos do tal banho.
Achei um absurdo. Um frio de rachar. Acho que agora estava com uns doze graus e
pela madrugada deveria chegar Aa cinco ou seis. Já ia discordar quando o chefe
Trovão me olhou enviesado e como estivesse lendo o meu pensamento, apontou para
mim dizendo: - Sinto muito, quem faltar vou considerar como falta de “Espírito
Escoteiro”. “Diacho” E agora? Não falamos nada. Tínhamos enorme respeito pelo
Chefe Trovão.
Dormi preocupado. Era o cúmulo do absurdo. Se isto era escotismo meu pai
era um macaco falante. Não aceitava tal ideia ou tal imposição. Pensei que no
outro dia juntaria minhas tralhas e iria embora. Mas meu filho estava ali.
Seria uma falta muito grande e uma tremenda decepção para ele. O jeito era
esperar a madrugada, pois achava que aquilo não passava de uma piada. Não
acordei às três e meia. Ninguém acordou. Não fomos chamados. Mas o Fabio um dos
pais acordou dez minutos após e chamou a todos nós. Levantamos assustados. Um
frio de rachar. Enrolado em um cobertor nos reunimos em volta do que restava do
fogo aceso frente às barracas. O chefe Trovão não estava na sua. Já tinha
partido sozinho.
O que fazer então? Cada um deu sua opinião no final, resolvemos ir até a
ducha e pedir desculpas ao chefe Trovão. Devíamos isso a ele. Não era longe nem
perto. Uns 200 metros abaixo da lagoa. Saímos tiritando de frio. Na trilha
todos nós sentíamos calafrios. Não acredito em fantasmas nem em alma do outro
mundo. Mas não sei por que, talvez o silêncio, as arvores sombrias, a lagoa escura
nos fazia ter um medo que me bambeava as pernas. Pé ante pé avistamos a ducha
(ficava uns 10 metros abaixo de nós) e vimos o chefe Trovão só de short,
debaixo da ducha com as mãos levantadas, abaixando junto ao corpo e ficando em
pé repetindo sempre, numa linguagem inteligível como se fosse uma prece ou
invocação. Foi então que uma luz brilhante apareceu.
Olhe, eu tremia igual vara verde. Nunca tinha visto nada igual. A luz
foi aumentando e em poucos segundos, diversos vultos como sombras fantasmagóricas
também lá estavam saudando o chefe Trovão. “Deus do Céu” que era aquilo? Ainda
não tinha visto nada igual em minha vida. O chefe levantou as mãos para o céu e
ficou acima do chão uns dois metros continuando sua reza e os vultos numa
espécie de dança macabra ficaram rodando em sua volta.
Um grande redemoinho foi formado. Não vi mais os vultos e o chefe
Trovão. A luz brilhante começou a faiscar, lançando raios para todos os lados.
Fugimos dali esbaforidos, tremendo, alguns garanto tinham molhado os pijamas,
ninguém falou nada, todos queriam ir à frente e ninguém atrás. Cada um entrou
em sua barraca, ofegante, esperando a calma chegar. Que nada, a tremedeira não
passava. Não estávamos acostumados com isto. Os minutos foram passando,
estávamos acalmando e eis que bem no inicio da trilha, pela fresta da barraca
avistamos o chefe Trovão.
Com um short curto, a toalha jogada nos ombros, assoviava alegre o
“Acampei lá na montanha”. Parecia estar em uma praia num escaldante verão. Não
mostrou curiosidade em saber se estávamos acordados. Fez uma pequena ondulação
com o corpo, mexeu com os braços e se dirigiu a sua barraca. Ao entrar se
voltou e abanou as mãos em direção à mata. Não vimos nada. No dia seguinte
levantamos calados. Poucos conseguiram dormir. O acampamento cumpriu seu
programa. Os escoteiros alegres, os seniores com seu grito de guerra, enfim uma
grande exultação de um programa que se não fosse o acontecido, poderia dizer
sem similar.
Retornamos no dia marcado. O Chefe Trovão parecia o mesmo. Professor,
tutor, instrutor, mas sempre quando nos encarava, um sorriso maroto brotava
para logo mostrar sua carranca de chefão. Na semana seguinte, notei que somente
eu e mais dez pais ainda estávamos participando do grupo. Os demais mandaram as
mães levar os filhos e avisar ao Chefe do Grupo que não poderiam continuar no movimento.
Não houve comentário. Parece que um pacto de silencio acometeu a todos.
Eu mesmo nem com minha esposa falei do assunto e do acontecido. Acho que todos
tinham medo de serem ridicularizados. Mas acredito e disso não tenho nenhuma
dúvida, que o Chefe Trovão tem um pacto com o coisa-ruim ou então com espíritos
amigos, cuja visita recebe sempre no afamado “banho das três e meia e seu
sabonete mágico”.
O porquê de seu convite não tinha nenhuma lógica. Porque então nos
convidou? Até hoje não sei. Sei que seus encontros maquiavélicos devem existir
até hoje. Ele sabe que aqueles que viram seu ritual nada dirão. O medo de tudo
o receio de represálias, seu estilo dominador nos faz esquecer o fato. Continuo
até hoje no escotismo. Sou Escotista de Tropa Escoteira. O Chefe Trovão há
alguns anos mudou de cidade. Não ouvi falar mais nele. Ninguém no grupo comenta
o assunto. Dizem que o Chefe do Grupo também participa do ritual, mas eu não
posso provar. Não vi e nem quero ver. Quando me lembro dele, sem querer vejo
chifres em sua cabeça. Deus me livre! E a vida continua, falei por falar.
Narrei por narrar. Não vi, não sei, não ouvi estou com os olhos fechados e
minha mente não pensa. Esqueçam o que disse!
E se alguém encontrar o Chefe Trovão por aí, digam que eu mandei um
forte abraço. Nada mais. Dele eu quero distância! Risos.
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