As crônicas de
um Chefe Escoteiro.
Uma história
de fogo de conselho.
Eram três patrulhas com poucos
jovens noviços e a maioria com adestramento acima da media. Isto não impedia
que o espírito de equipe se mantivesse unido. Eu conhecia alguns dos seus
membros e me tornei amigo deles pôr frequentar muito a sede do Grupo. Sempre
comentavam as suas aventuras e desventuras. Todos me achavam um amigo
mais velho e pôr me sentir um deles estufava o peito de satisfação, mesmo sendo
apenas um Assistente de Tropa. Havia feito na semana anterior um Curso
Técnico de Fogo de Conselho e apesar de ter participado em uma centena deles em
acampamentos, diversos temas novos foram transmitidos. Alguns ficaram
gravados em minha mente. Aproveitei a oportunidade para conversar com os
jovens e sentir o que eles pensavam.
Um deles, corroborado pelos
demais, me contou sua participação em um acampamento cujo Fogo de Conselho foi
considerado um dos melhores, pois achavam que nunca mais seria esquecido. Não
eram simples “pata tenras” já que nas patrulhas haviam diversos segundas
classes, primeira e até três com Lis de ouro. A atividade foi no mês de
junho anterior e eu me lembrava bem do frio que houve naqueles dias. Conforme
contavam, o acampamento foi cheio de surpresas. Aproveitaram um feriado com um
fim de semana prolongado e ficaram quatro dias acampados. No segundo dia, uma
forte chuva quase arrasou o acampamento, mas o pior foi à cheia do córrego
próximo que inundou boa área do campo. Quando montaram o acampamento, levaram
em consideração todas as possibilidades, inclusive de uma inundação. Mas a que
aconteceu não poderia ser esperado. Uma tromba d’água deve ter caído alguns
quilômetros acima e o pequeno riacho subiu mais de 4 metros do seu nível. Ficou como lição para
futuros acampamentos.
Mas na última noite não poderia
faltar o Fogo do Conselho. Este era sagrado. Eles tinham participado de
diversos tipos de Fogo e o da Tropa era considerado especial. O demonstrativo
era cansativo e sem graça. Para eles um espetáculo batido visto em circo ou em
TV, dirigido para principiantes e visitantes, mas nunca para os participantes. O
Fraterno com outras sessões, até que servia para alguma diversão, ali o
importante era participação. O da Tropa, este sim. Valia tudo. Somente a tropa
podia estar presente. Dificilmente haviam convidados. Era da tropa e para
tropa. Em casos extraordinários um ou dois eram admitidos, mas com a
concordância dos Monitores. Sem programa detalhado, sem animador, sem aquela
sequência de horário e apresentação. Era o que mais gostavam.
A tropa dominava completamente
os acontecimentos que surgiam espontaneamente. E isto tinha um efeito e sabor
especial principalmente quanto às dificuldades, às atividades
aventureiras vividas nos dias pré-fogo ou quando um fato novo com alguns
deles ou com toda a tropa tivesse um fato marcante, era o inicio e certeza de
um excelente Fogo de Conselho. Este é claro acreditavam seria o esperado.
Tinham a certeza de que ia ser lembrado pôr muitos e muitos anos! No dia
anterior, eles tinham feito tudo para uma limpeza geral, pois a enchente deixou
sequelas em alguns campos de Patrulha e em outras praticamente arrasou tudo. Às
patrulhas decidiram em Conselho de Tropa, fazer um mutirão, onde aquelas mais prejudicadas
seriam ajudadas pelas outras. Precisavam de folhas de bananeiras ou algo
similar para forrar o fundo das barracas.
Uma das patrulhas saiu à
procura pelas redondezas, e procura daqui e dali, encontraram uma plantação de
bananeiras, não muito grande. Claro que procuraram em volta se havia alguma
moradia e só encontram uma velha casa abandonada. Pôr dentro não havia nada,
mas o chão, as paredes e janelas estavam limpos. Pôr fora, não havia nada
jogado pelos cantos e até a cisterna tinha águas cristalinas e
asseadas. Pensaram que poderia ser uma morada de pessoas que vinham à
noite, mas não havia utensílios e nenhum móvel. Ficaram intrigados. Decidiram
cortar as folhas assim mesmo, pois às bananeiras não haviam sido podadas e com
o corte não seriam prejudicadas. Quando cortavam sentiam que estavam sendo
observados. Paravam, procuravam e nada. Quando voltavam para o
acampamento, novamente aquela sensação de estarem sendo seguidos, mas não viram
ninguém.
Às brincadeiras entre si
proliferaram naquele dia. Tanto a enchente, o trabalho e até mesmo a casa
abandonada, agora chamada da Morada do Fantasma, era motivo de comentário pôr
toda a tropa. O espírito do Fogo de Conselho havia sido criado. Isso era bom.
Decidiram fazer o fogo no terreiro da Morada do Fantasma. Ninguém foi
contra. A chefia aceitava e acatava, pois nada dizia o contrário. Sempre foi
feito assim e nada seria alterado. Após o jantar e um tempo livre, se preparam
para o fogo. Os preparativos eram: Madeira, mantas, uma vasilha de alumínio com
chocolate, (para esquentar na brasa) biscoitos um violão um pandeiro e muita
criatividade. Mais nada.
Não havia um “Animador de
Fogo”. Este iria surgir naturalmente no desenrolar da noite. Qualquer programa
escrito estava fora de cogitação. Não iriam se prender a um roteiro, pois ali,
naquela noite e em todas às outras a participação era completa. Sabiam o que
queriam e iriam fazer conforme a Tradição de Tropa.
A Patrulha de serviço não
perdeu tempo. Logo que chegaram ela preparou o fogo dentro dos padrões técnicos
para evitar incêndios e tinha que ser ascendida com no máximo dois palitos de
fósforos. Se não conseguissem, outra patrulha assumiria o que dificilmente
acontecia. Se havia uma coisa que detestavam, era o tal Lampião do Conselho.
Dava até vontade de rir do tal Lampião. Diziam que um bom mateiro ascende o
fogo em qualquer tempo e em qualquer lugar. Eu acreditava, pois o adestramento
da tropa sempre foi um dos melhores. Enquanto isto os demais não se
afastavam muito, pois a escuridão da noite e o lugar davam calafrios.
Todos foram chamados e se
assentaram a bel prazer, enquanto um Escoteiro ascendia o fogo. Nesta hora,
ficaram de pé, e como tradição antiga invocaram os Espíritos dos Ventos e
a viva voz, cantaram a Canção do Fogo de Conselho. Cantavam com gosto. Às
chamas já se esticavam aos céus quando terminaram. Ouviram alguém bater palmas.
Não eram eles. Se havia alguém escondido para amedrontar não seria com aquela
Tropa. Um dos chefes deu uma busca em volta da casa e dentro dela. Nada. Continuaram.
Logo uma Patrulha imitava outra quando da enchente. Surgiu palmas escoteiras
inventadas na hora. Uma parada para conversa, um chocolate, uma mordida num
biscoito. Conversas paralelas. Alguém alimenta o fogo, um dedilha o violão e
outro começa a cantar. Alguns acompanham dois se encaminham para o centro da
arena e começam a representar um Chefe e um Monitor. Risadas, palmas.
Pedem um jogo, um Monitor se
oferece para fazer um novo aprendido em outra atividade. Um grito. Não
muito alto. A tropa se cala. É brincadeira de alguém. Eles aceitam a
participação do “Fantasma”. Vai quebrar a cara pensam. Não foi a primeira vez.
Ouve outras em outros acampamentos. Agora não seriam surpreendidos. Continuam
às canções, improvisações, bate papos, jogos e até um pequeno Adestramento de
primeiros socorros. Não faltou o Contador de Historias, e nessa o
Assistente se destacava. Era assim o fogo da Tropa. Às brasas
começaram a aparecer. A lenha foi terminando e todos demonstravam sono. Uma
boca abre aqui, outra ali. A noite avançou sem ninguém perceber. Um Chefe
convida a todos para encerrarem com a Cadeia da Fraternidade. Começam a cantar
e param. Todos olham para dentro da casa e veem uma luz azul brilhante. Ficam
estáticos. Alguns vão até lá e dentro da casa não há luz! - Já existem
tremedeiras. Sem falar voltam para o acampamento. Ninguém quer ir à frente nem
ficar atrás.
Dormiram encostados uns nos
outros mesmo com a chefia alegrando e encorajando todos. No dia seguinte, após
o desarme do campo, na cerimônia da Bandeira, um morador das proximidades
estava presente assistindo de longe. Um Chefe o convidou para participar na
ferradura. Ele veio sem jeito e ali permaneceu até o final. Uma rodinha se
formou em redor dele, e ficaram sabendo a historia da “Morada do Fantasma”: -
Foi construída pôr um jovem, - dizia - filho de um “meeiro” (usa a terra
de uma fazenda para plantar, e paga parte da colheita ao dono) quando se casou.
Com menos de quatro meses, ele matou a mulher porque achou que esta o traia.
Não era verdade. Foi preso e condenado há vários anos de prisão. Ninguém sabe
onde está e quando vai sair da cadeia. O que todos sabem é que o espírito ou
“fantasma” da mulher não abandonou a casa e até hoje e a mantém limpa e
arrumada, mesmo sem móveis sem nada. Um padre já benzeu a casa, mas ela não sai
de lá.
Fim do acampamento. Ninguém
acreditava em fantasma nem naquela história absurda. Até hoje alguns ficam em
dúvida do que poderia ter sido. Contaram-me com tanta veemência que não
duvidei. Foram unanimes em dizer que foi o melhor Fogo de Conselho de suas
vidas. Acreditei em parte. Um fogo destes não acontece sempre. Como
eram escoteiros e não pescadores, permaneci na dúvida. Serve como
estórias dos Fogos de Conselho onde o calor humano é maior do que qualquer verdade!
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