Crônicas de
um Chefe Escoteiro.
Lomanto um
Almoxarife&intendente para ninguém colocar defeito.
Vinte minutos de reunião de
patrulha. Desta vez na sede escoteira. Lomanto fez um sinal que queria a
palavra. Olhamos para ele sutilmente. Não podíamos deixar transparecer nada. Se
ele desconfiasse do que pensávamos ia embora imediatamente. Lomanto era único. Muitos que não o conheciam
achavam que ele era mudo. Quase não falava. Naquela tarde sentamos em nossos
bancos de madeira, que cada um fez o seu com caixotes doados pelo Senhor Joventino
dono do Armazém das Flores. – Está faltando a Faca de cabo de osso! Disse –
Ninguém falou nada. Nem devíamos falar. Se ele começou que terminasse. Demorou
vinte minutos para falar esta frase. Seis minutos depois completou – Alguém
sumiu com ela no Acampamento na semana passada no Riacho Seco. Não falou mais
nada daí em diante. Nonato o Monitor esperou sua hora de falar. – Você não
anotou quem a levou? Lomanto olhou para Nonato com os olhos em fogo! – Ninguém
disse nada. Quinze minutos depois ele disse – Vou lá domingo, preciso de alguém
para ir comigo!
Eu conheci muitos almoxarifes, mas
igual à Lomanto nunca vi. Era perfeito. Tudo muito bem anotado. Fazia cópias e
entregava a cada um da patrulha, em cima estava escrito – “Você também é
responsável”. Se quisesse um facão ele entregava e você tinha de assinar. O
facão brilhava o fio perfeito, o cabo preso com tiras plásticas para não
quebrar. Nossa caixa de intendência podia não ser a melhor da tropa, mas
ninguém tinha uma superior. A caixa de primeiros socorros era perfeita. A
carrocinha sempre limpa e engraxada. Nosso material fazia gosto e mesmo com a
mudez dele nos sabíamos que ele era especial. Agora a faca de cabo de osso
sumiu. Para ele era como se tivessem tirado um pedaço de sua carne. Ninguém
entendeu como ele não anotou. Ele nada disse. Aprendemos com ele a ter
responsabilidade com nossos encargos na patrulha. Se ele levava a sério nós
também tínhamos a obrigação de ser sérios. Bem nosso cozinheiro era perfeito,
nosso Construtor de Pioneirias&tesoureiro era demais. Jonatah o treinador
de jogos&bombeirolenhador sabia o que fazer. Todos nos sabíamos que
devíamos ter responsabilidade com nossos cargos, pois a patrulha dependia de
nós.
Três frases ditas por Lomanto e uma do
Nonato o Monitor e a reunião terminou. Sempre era assim. Ao levantarmos após
todos assinarem a ata Lomanto me olhou. Eu sabia. Ele também sabia que eu iria
com ele atrás da faca de cabo de osso. Se alguém disse que compraria uma nova
era briga na certa. – Responsabilidade é tomar conta de bens de todos. Se
alguém não é responsável não merece estar na patrulha. Este era um dizer dele e
eu sabia de cor. Combinamos para domingo e partimos. Não era perto, quase três
horas de bicicleta. O tempo estava bom e não houve contratempos até o Riacho
Seco. Procuramos e nada. Lomanto calado como sempre. Um pouco mais acima
avistamos dois homens. Estavam abrindo uma novilha morta. O serviço quase
terminado. Era comum naquela época açougueiros comprarem em fazendas e ali
mesmo destrincharem. Mas Lomanto não tirava os olhos do “baixinho” ele estava
com a faca de cabo de osso. Eu vi e reconheci. Eram dois homens mal encarados.
Um deles foi até um remanso do riacho e o outro foi atrás. Só vi Lomanto voando
como o vento em sua bicicleta, passar pela caminhonete deles, pegar a faca e
sumir dali. Fiz o mesmo. Ouvi gritos de pega ladrão.
Chegamos à sede espavoridos e cansados.
Lomanto ficou mais de meia hora lavando e secando a faca. Depois pegou uma
pequena lima e afiou o fio da faca. Era como se a faca fosse o filho dele.
Guardou. Olhou para mim, colocou sua mão em mão ombro e mexeu com a cabeça como
a dizer – Obrigado. No sábado a reunião se desenvolvia normalmente. O Chefe
Miraldino atendeu dois homens que o procuraram. Reconheci logo, eram os dois açougueiros.
A tropa foi formada – O Chefe perguntou quem pegou uma faca dos açougueiros.
Lomanto deu um passo à frente – Nunca na vida vi Lomanto falando tanto. Acho
que o que falou valeu por todo ano – Ele foi até a presença dos açougueiros. –
Esta faca é da minha patrulha. Ela tem uma marca, tem um L de Patrulha Lobo no
cabo de osso. Posso mostrar. Não é de vocês. Não sei onde a acharam, mas não
vou devolver. Nem por ordem do Chefe!
Nonato o Monitor se aproximou. –
Chefe a faca é nossa não existe a menor dúvida. O Chefe olhou para os
açougueiros. – Um deles disse – Se pagar pela faca pode ficar com ela. O Chefe
Miraldino era sargento da Policia Militar – ele disse – Vamos fazer o seguinte,
vocês me mostram o recebo da compra da vaca que mataram e eu pago a faca! Os
dois açougueiros não disseram nada. Saíram resmungando e reclamando que os
Escoteiros são irresponsáveis. – Eu sabia que estava havendo muito roubo de
gado. Era comum alguns açougueiros desonestos fazerem isto. Nunca mais os vi.
Lomanto passou quatro meses sem dizer uma única palavra. Não precisava. Era um
amigão. Um Escoteiro dos bons, um Escoteiro que não precisa falar, mas que sabe
ser responsável com o que pertence a todos. Para isto daria sua vida para
proteger um bem comum.
Lomanto sempre nos deu exemplos de
como se procede um patrulheiro e sua responsabilidade com a patrulha. Se cada
um faz sua parte a patrulha é uma família feliz. Éramos pobres, quando
precisávamos de algum item na nossa intendência era uma luta. O que conseguíamos
entregávamos a Lomanto de olhos fechados. Afinal precisávamos acampar e nada
melhor que um bom facão, uma boa machadinha, umas facas mateiras para limpar
nossos peixes, cortar tomates, mamões, e tantas outras coisas. Sabíamos que
podíamos confiar nele e em todos da patrulha. Sabíamos que isto era um dos
melhores aprendizados que nós Escoteiros podíamos ter. Manter o bem comum em
prol da coletividade foi o que sempre aprendemos. Fico pensando em Lomanto
adulto, morando em uma rua que é de todos, perto de uma praça que é de todos
como ele estaria procedendo. Como sempre. O bem comum não é meu nem seu, é de
todos nós!
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