Lendas
Escoteiras.
Capotira
o Selvagem da Cabeça Branca.
Quando jovem Escoteiro e sênior
eu sabia que o melhor lugar para ouvir histórias impossíveis era em uma
barbearia. Hoje elas desapareceram dando lugar aos salões de beleza. Muitas de
minhas aventuras com a patrulha foram de histórias impossíveis que ouvimos lá.
Claro que gostávamos de enfrentar a estrada, as matas, campinas e colinas, rios
estreitos e largos, cachoeiras e corredeiras infernais e as mais altas
montanhas. Participei de mil aventuras, mas desta eu não esqueço e nunca
esquecerei. Cortava o cabelo com Seu Praxedes meu barbeiro e do meu pai por
muitos anos. Em dado momento um bigodudo com cara de bandido esperando sua vez
começou a contar que morava na Laguna Seca do Morto Vivo. Eu nunca tinha ouvido
falar. Rindo e contou que bem longe da sua casa, ao norte, subindo o Rio Turvo havia
uma imensa floresta. Inóspita. Disse ele que uma tarde um homem todo marcado e
sangrando como se tivesse sido esfolado vivo chegou a sua porta pedindo
socorro. Tratou dele como pode e no quinto dia partiu. Ao sair na porta disse
para ele: - Não entrem nunca na Floresta do Diabo! Lá mora o índio mais cruel
que conheci. O Selvagem da Cabeça Branca. Ele esfola e mata. Não disse mais
nada e sumiu na plantação de figos que tinha acabado de plantar.
Eu prestava uma atenção enorme a
sua história. Quando ele ia embora eu disse – Moço, como faço para chegar a
Floresta do Diabo? – Ele riu. Quer mesmo ir? Vá de Trem até Baixo Guandu. Suba
o rio Turvo por quarenta quilômetros. Quando avistar uma garganta entre duas
montanhas irá avistar uma imensa floresta que parece sumir no nevoeiro que
todos os dias se formam. – Mas antes avise seus pais que você nunca mais vai
voltar. Dizem às lendas que poucos voltam vivo para contar. Depois de dizer
isto partiu dando gargalhadas até sumir na Rua Sumidouro de nossa cidade. Eu
sabia que a história não terminaria aí. À noite contei para a Patrulha. Riram
de mim, mas ficaram em dúvida. Pedregulho me olhou e perguntou: - Quarenta
quilômetros? Precisamos de muitos dias para ir lá. E se o Rio tiver
corredeiras? Tomate se interessou. Acho que vale a pena conhecer este Selvagem
da Cabeça Branca. Eu sabia que a história fervia na mente de cada um. Catapora
o Monitor sorriu e perguntou a todos? - Vale a pena esquecer nosso acampamento
em Vale Feliz e ir para a Montanha do Diabo? Não deu outra. Um desafio destes
nunca seria ignorado pelos Touros.
Preparamos tudo. Que se
danassem os avisos dos amigos, pois na semana seguinte iriamos partir para a
Floresta do Diabo. O Selvagem da Cabeça Branca ia conhecer os ferozes seniores
da Patrulha Touro. Seu Capistrano Chefe da Estação sorria ao nos ver com todos
os equipamentos. Ele já nos conhecia de longa data. Sabia que iriamos pedir
passagens, pois nunca nos foi negado na Companhia Vale do Rio Doce. – Para onde
vão desta vez? Baixo Guandu seu Capistrano. Vamos subir o Rio Turvo até a
Floresta do Diabo. – O Rio eu conheço a floresta não ele disse. O trem parou na
plataforma. Viagem de cinco horas todos cochilando. Era assim os seniores da
Touro. Éramos seis, Pedregulho, Catapora, Linguiça, Pé de Pano, Banguelo e eu Nariz
Longo. Baixo Guandu naquela época era uma pequena cidade de uns vinte mil
habitantes. O pontilhão nos mostrava o Rio Turvo. Era meio dia quando iniciamos
a subida do rio. Gostosa, sem muitos obstáculos. Pé de Pano era o mais alegre,
cantava, ria, contava piadas. Às seis da tarde avistamos ao longe a Floresta.
Melhor passar a noite ali e seguir no dia seguinte.
Uma sopinha de macarrão que
Banguelo era mestre e fomos dormir. Estávamos cansados e o dia seguinte
prometia. Saímos pelas seis da manhã e às duas da tarde chegamos na Floresta do
Diabo. Fechada, espessa, escura e uma bruma cinzenta que quase não nos deixava
ver a frente. Uma subida íngreme. Começou a escurecer abrimos uma pequena
clareira e montamos acampamento. Um arroz com linguiça um fogo para bater papo
e cama. Banguelo rezou alto naquela noite. Não sabia por que, pois ele nunca
fazia isto. Acordamos cedo. A mata parecia estar calada. Nenhum pássaro
cantava. Sai da barraca espreguiçando e vi a minha frente um índio enorme. Mais
de dois metros de altura. Forte com cabeleira totalmente branca. Pedregulho e
Catapora também ao sair da barraca avistarem a figura. Ele nos fitava sem
piscar. Devia ser o tal que diziam ser mortal. Minhas calças começaram a
molhar.
Todos saíram das barracas e cada
um ficou mais próximo do outro. Todos pensavam a mesma coisa. Já sabiam do índio
selvagem. Vai nos matar? Vai nos esfolar? Pé de Pano pegou seu bastão. Banguelo
piscou para ele. Melhor não. Uma bastonada não vai resolver. O índio é forte
demais. O índio fez um sinal como se quisesse que o seguíssemos. Nem as
barracas desarmamos. Nossa tralha ficou lá. Seguimos atrás dele. Ele não olhava
para trás. Sabia que não iriamos fugir naquela mata desconhecida. Nos levou por
uma encosta onde a trilha era pequena, bastava pisar em falso para sumir em um
penhasco enorme. Uma hora de jornada e chegamos numa ponte pênsil de cipó. Admirei
a ponte. Se saísse vivo um dia iria fazer uma igual. Logo avistamos um platô
enorme com muitas ocas. Uns vinte índios nos cercaram. Dezenas de índias e
crianças índias riam a mais não poder. O gigante da cabeça branca nos fez um
sinal para entrarmos em uma Oca enorme. Para dizer a verdade ali caberia toda a
tribo dele. No meio da oca um pequeno fogo e sentimos um cheiro danado de ruim.
Fedia mesmo. Só podia ser de algum bicho morto, mas não chegamos a ver.
O cabeça branca
nos mandou sentar. Com uma voz simples sem afetação ele começou a falar. Não
antes de algumas índias trazerem um pedaço de carne para cada um. Era ela! A
fedorenta! Olhei para Catapora e ele para Pé de Pano. Eu sabia que devíamos
comer. Se eles ofereceram não tinha saída. Não comer era desfeita. O Cabeça
Branca começou a falar: - Não sei o que fazer com vocês. Visitas aqui não são
bem vindas. Quem aparece ou matamos ou esfolamos para servir de exemplo aos
outros que quiserem vir aqui. Há muitas luas seus irmãos brancos mataram quase
todos da minha tribo. Eu era menino e consegui fugir com outros jovens que se
esconderam. Morávamos próximo a Aimorés quase junto a Lagoa da Traíra. Meu pai
o Cacique Cabelos Longos e minha Mãe Pontiak morreram a tiros. Iraci e Amanaki
meus amigos fugiram comigo. Descobrimos esta floresta e nos escondemos aqui. Na
Garganta do Cajuru temos um posto de observação. Sabíamos de vocês desde que
dormiram no Rio Turvo. Iraci me deu oito filhos. Somos poucos, menos de cem.
Aqui temos água, uma represa onde criamos peixes. Não temos riquezas. Plantamos
mandioca e cana e abobora. Não precisamos de mais.
Amanhã vamos decidir o que
fazer com vocês. Foi embora e ficamos com mais cinco índios na oca. A noite
chegou e custamos para dormir. Pela manhã uma indiazinha nos chamou. – O
Cacique Capotira quer ver vocês. Surpresa. Em uma roda de índios entregou
nossas mochilas e nossas barracas. Disse que podíamos ir embora. Não pediu mais
nada nem mesmo para não contarmos sobre eles. Banguelo sempre surpreendendo
apertou sua mão com a esquerda. Ele riu. Dois índios nos levou até a Garganta
Cajuru. Mostrou-nos muitas piteiras secas. Com elas disseram que em menos de um
dia chegaríamos à foz do rio Doce. Quando partimos senti uma tristeza enorme.
Por eles. Juramos todos nunca contar a história para ninguém. À tardinha
chegamos em Baixo Guandu e pegamos o trem noturno para nossa cidade. Foi uma
das nossas maiores aventuras. Ninguém soube de nossa história. Ela só era
comentada em Fogo de Conselho da patrulha ou em uma conversa pé do fogo.
O tempo passou e um dia
encontrei com Pedregulho. Ele me disse que leu em um jornal que a história da
Tribo dos Cabeças Brancas ficou conhecida de todos. Lá também estava escrito
que o governo deu a eles boas terras do outro lado do rio próximo a Aimorés.
Ele me disse que a tribo nunca mais foi importunada por brancos. Até hoje sinto
saudades de Capotira, de Pontiac, de Iraci e daqueles selvagens que conhecemos.
Espero que se ainda estiverem vivos que estejam felizes, pois lá em sua tribo
sentiam-se libertos, e só o sol e a lua sabiam como a felicidade fazia parte de
todos aqueles Cabeças Brancas. Quem sejam muito felizes.
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