Conversa
ao pé do fogo.
O
admirável Cinto Escoteiro.
Olhei de novo. Não havia
erro. Meus olhos fixaram com mais carinho. Sem dúvida, era ele mesmo. O velho
amigo de sempre. Agora um pouco descuidado. Sem brilho e sem a mesma imponência
de outrora. Fiquei com pena do couro. Desbotado e carcomido em algumas partes.
O homem que o portava era moreno, quem sabe entrando nos sessenta anos. Os
cabelos quase brancos. Um ar de cansaço talvez pela subida da rampa do Pronto
Socorro. Pensei em interpelá-lo para saber a história dele. Quem sabe ele fora
Escoteiro? Ou quem sabe o ganhou de alguém que foi Escoteiro? Eu sabia que
aquele cinto deveria ter história. Muitas. Esqueci-me de dizer, eu hoje estava
em uma sala de recepção, esperando a chamada para fazer um exame de pulmão.
Nada demais apenas rotina. Já fiz tantos! A sala cheia. Pessoas indo e vindo. Interessante,
sempre quando a espera é longa e eu sei que ser atendido pelo INSS ou pela
prefeitura da minha cidade, não é fácil. Nestes casos sempre dou um gostoso
cochilo. Sentado mesmo. Aprendi a cochilar nas espera de minha chamada. Houve
casos de esperar seis horas. Paciência pobre sem plano de saúde é isto mesmo e
não tem direito de reclamar. Adoro cochilar e pensar. Não noto as pessoas ao
meu redor, mas quis o destino que eu estivesse de olho aberto para ver a
entrada no meio daquele mundaréu de gente, de um maravilhoso, um admirável Cinto
Escoteiro.
Minha memória gosta de
trabalhar. Sempre procurando aqui e ali um motivo para funcionar os neurônios e
os maravilhosos chips do cérebro. Fui buscar o passado. Lá muito além de
antigamente. Chegava da escola e pegava minha caixa de engraxate. Era rotina.
Cinco quarteirões e chegava com minha bicicleta em frente à Casa Abil. Na rua
principal. O Senhor Nestor proprietário sempre me deixou trabalhar ali. Cada
tostão suado era guardado com carinho. Sabia que juntar quarenta e cinco reais
aos preços de hoje não era fácil. Mas precisava do cinto para fazer a promessa.
Minha mãe fez a calça e a camisa. O meião eu comprei na Dona Leonor, da casa de
tecidos. Ela era mãe de Eduardo, um lobinho meu amigo. Paguei a vista. Ela me
deu um bom desconto. Sempre gostei de negociar. Sabia que o lenço o grupo dava
para nós com o anel de couro. Lembro-me daquela tarde que fui ao correio. Comprei
um vale postal de quarenta e cinco reais e fiz o pedido na loja Escoteira no
Rio de Janeiro. Tinha o endereço. Agora era esperar a chegada do cinto. Poderia
demorar vinte ou quarenta dias. O correio não era um primaz como hoje.
Demorou exatamente
trinta e dois dias. Eu passava todos os dias no correio. De manhã e a tarde. E
aí seu Neneco, chegou? Ele balançava a cabeça e eu decepcionado ia para casa ou
trabalhar na porta da Casa Abil. Um belo dia pela manhã ao sair do colégio eu passei
por lá. Surpresa, seu Neneco me disse que tinha chegado um sorriso enorme eu dei
para ele. Peguei a caixa e fui correndo para casa. Abri. Que cinto lindo meu
Deus! Ensinaram-me na Patrulha como engraxar o couro e fazer brilhar a fivela.
Meu pai era seleiro. Fazia selas para cavalos. Chamou-me e disse – Olhe, recebi
semana passada esta vaqueta de couro marrom, uma das mais lindas de um curtume
da Bahia. Quer ver? Se quiser troco o couro do seu cinto. Dito e feito.
Troquei. Com uma boa graxa durou para sempre. Era meu orgulho. Mas não era só
eu. Todos os escoteiros daquela época davam um enorme valor ao seu cinto.
Meus pensamentos voltaram
ao presente. Procurei o ilustre desconhecido que porta o cinto. Não vi mais o homem do cinto Escoteiro.
Desapareceu na multidão que ali esperava uma consulta ou um exame. São coisas
assim que marcam muito a nós escoteiros. O cinto é imutável. Mudaram a flor de
lis. Uma pena. Adorava a antiga. Hoje eu triste me pergunto. Por quê? Para
ficarmos mais modernos? Não sei. Já mudaram tanto que nossa marca desaparece no
tempo das egocentricidades dos modernos homens escoteiros de hoje. Brincando na
internet, achei um pequeno trecho, que nada explica e conforme diz o já
falecido Chacrinha só “estrumbica”. Vejamos:
“Dizem
que mudanças são para os loucos”. Os desajustados. Os rebeldes. Os criadores de
caso. Os que são peças redondas nos buracos quadrados. Os que veem as coisas de
forma diferente. Eles não gostam de regras. E eles não têm nenhum respeito pelo status quo. Você pode citá-los,
discorda-los, glorificá-los ou difamá-los. A única coisa que você não pode
fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Eles inventam. Eles imaginam.
Eles curam. Eles exploram. Eles criam. Eles inspiram. Eles empurram a raça
humana para frente sem saber o que é o certo e o errado. “Talvez eles tenham
que ser loucos”. Verdade mesmo?
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