A coeducação (quando foi
implantada em nosso país)
Abri
a porta sem bater e entrei. Na Sala Grande só uma lâmpada acesa. O “Velho”
estava em pé junto a estante, folheando um livro. Não olhou para traz, já
conhecia meus passos e a maneira de abrir a porta. - Li e reli este livro
várias vezes e até agora não entendo o porquê desta luta imbecil! . O “Velho”
de costas sussurrava, talvez para si próprio ou quem sabe, preparando mais uma
de suas armadilhas para fazer certo alarde comigo.
Raciocinei que estava claro o motivo
do comentário. Era o clássico de Cervantes, ou seja, a parte onde Dom Quixote e
sua batalha contra os “Moinhos de vento”. Mas não dei trela. Tinha outro
assunto com o "Velho" e como sou novo era um pouco complexo para mim.
O “Velho” um saudosista e tradicionalista iria achar um prato cheio a
discussão.
- Havia pensado em colocar na pauta do
Conselho de Chefes e se aprovado levar a Comissão Executiva para ser discutido,
o assunto da implantação da Coeducação no Grupo Escoteiro.
Arraigados ao passado, mesmo tendo
diversos dirigentes de mente aberta, a palavra do “Velho” iria valer muito na
decisão final. O “Velho” querendo ler
meus pensamentos, se voltou, me olhou, sorriu e caminhou até a sua poltrona de
vime favorita, mas não se sentou. Encarava-me com uma expressão enigmática que
me deixou mais embaraçado, pois nunca o “Velho” tinha aquele procedimento.
- “Diabos” pensei. - O “Velho” tem o dom de me deixar nervoso em
certos momentos e não sei por quê! - arrematei. Sem dizer nada, sentei num
banquinho de madeira de três pés, o meu preferido e soltei aos borbotões o
assunto que me levava ali. Não dei chance ao “Velho” de me interromper.
Ele permaneceu em pé, espantado, pois
não esperava minha atitude tomada daquele jeito. - “Decidi discutir o assunto
da Coeducação no Grupo, - falei - Entendo que para as moças existem o
Bandeirantismo, mas os grupos que implantaram, tiveram uma maior participação
dos pais, enriqueceu suas sessões e houve uma aprovação geral da comunidade.
Nosso Distrital acha que o Grupo tem qualidades e nas reuniões de pais de
sessões, muitos tem comentado sobre suas filhas e o interesse delas em
participar”.
- Excelente ideia, disse o “Velho”.
Não sei como você ou os outros membros do Grupo não pensaram nisso antes.
Quase cai do banquinho. O susto não
foi maior porque estava encostado na parede. - O “Velho” sorria matreiramente.
Pegou-me de pronto o danado. Ainda com aquela aparência galhofa que de vez em
quando mostrava o seu outro lado, foi até a estante e pegou um livro que
desconhecia e folheando encontrou o que procurava.
- “Deixe-me ler para você o que pensava o
nosso fundador, mesmo naquela época em que moças e rapazes mantinham um
distanciamento em todas as áreas e era difícil uma aproximação entre eles”. -
Já nos anos de 1901 a 1903, quando ainda estava na África do Sul, de todos os
lados, rapazes e moças me escreviam pedindo conselhos sobre a maneira de viver
e sobre a vida dos exploradores militares ou homens da floresta que são os
heróis dos adolescentes. No pouco tempo que tinha, procurava responder as
mensagens recebidas, (e isto aconteceu antes da implantação das bases do
movimento Escoteiro). - Continuou o “Velho”.
-
É somente pelo resultado e não pelo método que se julga a instrução.
Até alguns anos atrás, estes resultados eram de homens e mulheres de boa
conduta, disciplinados, gente boa como se fossem soldados em parada militar,
porém, sem personalidade nem força de caráter e totalmente provados de espírito
de iniciativa ou de aventura e incapazes de se “virarem”.
- E continuou lendo: - Hoje a
instrução está enfrentando novas dificuldades. Um instinto de distração sempre
mais forte, os efeitos perniciosos dos jornais em busca do sensacional, os
filmes pornográficos e o fácil caminho para os prazeres sexuais e pôr fim à
paixão do jogo. Com o moderno crescimento das cidades, fabricas rodovias e
linhas telefônicas, e de tudo aquilo que chamamos “civilização” a natureza é
mais afastada ainda das pessoas. Suas belezas e seus milagres se tornam
estranhos as nossas afinidades pessoais com a criação divina e se perdem na
vida materialista das multidões, com suas deprimentes condições entre as
espantosas construções erguidas pelo homem.
A natureza vem sendo expulsa para fora
da nossa vida e é substituída pela artificial e graças à bicicleta, ao carro,
ao elevador, as nossas pernas acabarão pôr atrofiarem-se pôr falta de
exercícios e os nossos filhos terão cérebros maiores, mas sem músculos.
- E olhe que isto foi escrito na
década de 40, disse o “Velho”. Fechou o livro, colocou-o na mesinha próxima e
sentou-se em sua poltrona de vime já gasta com o tempo, iniciando seu ritual do
cachimbo e deu o assunto como encerrado. Sua pose era aquela de começo de
semana. Alheio a tudo e a todos.
Fiquei embasbacado! - Nunca o “Velho”
tinha falado daquele jeito e aprovado uma ideia tão de pronto. Também misturou
tudo, pois no final de sua leitura não entendi bulhufas. O que tinha a
coeducação a ver com tudo, mais ainda, a civilização etc. e etc. Bem aquele era
o jeito dele.
Vovó apareceu na sala, e uma áurea de
luz tão diferente do “Velho” deu outro ar, outra luz, outra vida... Ah! A Vovó,
com seus cabelos brancos, e seu sorriso radiante, e aquele semblante que só ela
sabia transmitir. Claro, trouxe aquele café fumegante, com os biscoitos de
polvilho tão sequinhos, que mesmo tendo jantado ao ir para a casa do “Velho”,
degluti com sabor, parecendo um “esfomeado” naquela noite de fim de inverno e
de mais um dia da minha tradição de anos em manter minhas conversas com o
“Velho”.
Fui
embora antes que ele acendesse o cachimbo. Não houve até logo ou boa noite. Ele
sempre me deixava encucado. Algumas vezes, falava, falava a falava. Não deixava
duvidas. Em outras eu não entendia nada, mas para um bom entendedor uma frase é
um livro. Mas eu gostava do “Velho”. Ele sempre me distraia e eu aumentava os
meus conhecimentos do Escotismo.
Eu pensava sempre que hoje nosso
movimento poderia ser grande, tanto em qualidade como quantidade. Bastava ter
pessoas como ele na ativa. E olhe que eu sabia que existiam centenas. Todos mal
aproveitados. Quem perdia era o Movimento Escoteiro.
O vento frio me pegou de pronto ao
chegar à rua. Um carro passou pôr mim buzinando... Ainda tinha estrelas no
céu...
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