Crônicas de um Chefe Escoteiro.
Ariranha, um cão inesquecível.
Não tenho
certeza se foi em 1953 ou 1954 que conheci Ariranha. Nove dias para ser exato
convivemos juntos em um acampamento de tropa na Mata do Quati. Não dá para
esquecer, pois foi nossa segunda Olimpíada Escoteira, e a cada ano elas
marcavam época. Ideia do Munir, um Pioneiro meio afastado do grupo. Chefe Jessé
relutou, mas a Corte de Honra achou a ideia expendida. Era uma Olimpíada
diferente. Sempre acampávamos em uma clareira próxima ao Rio do Morcego, onde
se avistava a bela cachoeira do Sonho. Na época da Piracema era um espetáculo
ver os peixes tentando subir nas corredeiras e pulando sobre as pedras. Se
podia pegar com a mão.
As provas eram
somente de atividades aventureiras e técnicas – Subir em árvores de seis metros
de altura em um minuto – atravessar o rio nadando em dez minutos ida e volta
(60 metros) – Fazer 25 nós escoteiros ou de marinheiro em seis minutos de olhos
fechados – Deixar-se cair da cachoeira (oitos metros) em um tambor vazio de 200
litros – Semáforas e Morse uma prova onde tínhamos grandes sinaleiros – Fazer
um café e pão do caçador em oito minutos – Uma fogueira em dez minutos que
durasse quarenta minutos sem alimentar – Cortar uma tora de madeira de oito
polegadas em oito minutos usando só um facão – Trilha e pista de animais e
tantas outras que deixaram saudades.
O caminhão da
prefeitura nos deixou pela manhã na trilha da mata que levava ao Rio do
Morcego. O resto era a pé. Apenas quatro quilômetros. Adorávamos este
acampamento anual. A Patrulha se preparava meses antes. O troféu pela vitória
alcançada não eram medalhas. Uma faca Escoteira, um canivete Suíço, uma
bússola, vários distintivos de lapela com flor de lis, premios que
ambicionávamos muito. Cada Patrulha tinha o seu campo separado da outra mais ou
menos por oitenta metros. As pioneiras eram feitas no primeiro dia, pois no
segundo as Olimpíadas começavam.
Lembro que estava
fazendo uma fossa para o WC quando avistei Ariranha. Notei algum diferente.
Parecia um lobo Guará, mas tinha o pelo cinza e quase sem rabo diferente do
lobo que conhecia bem. Quem sabe era um cruzamento com um vira-lata qualquer
com alguma loba perdida por aí. Ele nunca sentava. Sempre em pé, orelhas para o
alto e olhando sem piscar o que fazíamos. Quando me aproximava ele dava alguns
passos para trás e parava. Durante todo o dia ele ficou lá, próximo ao nosso
campo de patrulha. Acho que foi o Israel que lhe deu o nome de Ariranha. Porque
não sei. À noite quando íamos dormir ele lá estava na entrada do pórtico com se
fosse velar nosso sono. Pela manhã impreterivelmente lá o encontrávamos.
Durante a
realização das provas da Olimpíada, ele ficava muito próximo a mim. Uma vez
entrando na mata a procura de uma pista pisei em falso e um enorme corte se fez
em minha perna bem abaixo do joelho. Ele veio até a mim pela primeira vez e
lambeu onde o sangue escorria. Parou na hora. Quando passei a mão em seu pelo
saltou de lado e tomou distância. Uma noite acordamos com seus latidos. Latia
para uma enorme cascavel que impreterivelmente invadiria nosso campo. Ele a
espantou. Outra vez seus latidos foram mais altos e foi à tarde quando
estávamos tomando banho no córrego da Lagartixa. Desta vez era uma Onça parda.
Fugiu com seus latidos.
Durante os nove
dias de campo, Ariranha lá permaneceu. No último dia no cerimonial de bandeira
Ariranha se colocou ao meu lado na ferradura. Não me olhava. Estava fixo na
bandeira Nacional. Enquanto ela farfalhava ao sabor do vento e descia dos céus
seus olhos acompanhavam. Quando as patrulhas deram o grito ele ficou no meio e
pela primeira vez se deixou abraçar. Foi um espetáculo comovente. Todos os
escoteiros das demais patrulhas vieram também abraçá-lo. Ao partirmos ele nos
acompanhou até a estrada onde pegaríamos o caminhão da prefeitura. Ao subir na
carroceria ele estava lá me olhando. Abanando o pequeno rabo e deu um uivo
enorme. Gritante e choroso. Como se fosse um lobo de verdade se despedindo para
sempre.
Voltei para
casa chorando. Chorei por vários dias. Devia ter trazido ele comigo, mas meu
pai disse que ele era da floresta, nunca iria se acostumar na cidade. Chamei o
Romildo na semana seguinte e fomos até lá de bicicleta. Rodamos e rodamos e nem
sinal de Ariranha. Nunca mais o vi, mas nunca mais o esqueci. Ariranha ficou
marcado em nossa Patrulha lobo. No nosso livro de Atas ele teve um lugar
especial. Não sei se é fácil explicar como se ama um cão em poucos dias e nunca
mais o esquece. Não sei mesmo. Até hoje me lembro de Ariranha com saudades.
Histórias são histórias, tem umas que marcam, tem outras que ficam gravadas em
nossa mente para sempre!
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