Evitar o perigo não é, a longo prazo,
tão seguro quanto expor-se ao perigo. A vida é uma aventura ousada ou, então,
não é nada.
O Selvagem das Terras Altas.
A história do Cacique Capotira. O Selvagem da Cabeça Branca.
Se havia
algum que me deixava deprimido era não poder fazer alguma atividade que por um
motivo ou outro pensei em fazer. Nunca em minha vida tive medo de enfrentar a
estrada, as matas, campinas, os rios estreitos e largos, as cachoeiras, as
corredeiras infernais e até as mais altas montanhas. Deliciava-me quando
conseguia conquistar cumes imensos, atravessar rios caudalosos seja de que
maneira for descendo corredeiras ou mesmo encontrar com o imponderável pela
frente era motivo de orgulho. Não sei quantas vezes passei por isto. Medo? Um
pouco. Muitas vezes “molhei as calças” e não me envergonho de dizer. O que me
deixava agora chateado era não encontrar alguém da Patrulha para ir comigo.
Estava enfezado. Israel disse que não podia – Bitelô, como vou ficar vinte dias
fora? – Tãozinho então – Nem posso pensar nisto Bitelô, meu pai não vai deixar
nunca. E assim um por um não encontrei ninguém que topasse enfrentar um desafio
novo.
Tudo começou
quando fui cortar o cabelo na Barbearia do seu Praxedes. Era o barbeiro do meu
pai há muitos anos. Eu cortava cabelo com ele desde os cinco. Ele sempre soube o
que fazer e como era o corte. Estava lá entretido quando entrou um sujeito com
um bigode que nunca tinha visto um igual. Enorme. Diria que os lados quase
alcançavam ao queixo. Passou um tempo e ele começou a conversar com o seu
Praxedes e conversa vai conversa vem disse que morava na Morada do Morto Vivo.
Nunca ouvi falar. Seu Praxedes balançou a cabeça. Contou então a história mais
incrível que tinha ouvido. Disse que bem longe de sua casa, bem ao norte
subindo o Rio Turvo, quem sabe duas semanas a pé, existia uma serra alta, toda
tomada por uma imensa floresta. Ninguém ainda tinha entrado nela. Era
completamente desconhecida. Um dia um homem todo marcado e sangrando como se
tivesse sido esfolado vivo chegou a sua porta pedindo ajuda e socorro. Trataram
dele dentro do que conheciam e no quinto dia ele partiu. Quando ia virando a
curva da Trilha da Goiabeira gritou – Nunca tentei entrar na Floresta do Diabo!
Lá ainda mora o Selvagem da Cabeça Branca. Ele não conversa com ninguém. Ele
esfola e mata. E sumiu junto as plantação de figo que tínhamos acabado de
plantar.
Depois não
falou mais. Cortou o cabelo aparou o bigode e quando ia saindo o segurei pelo
braço. Ele me olhou e vi nos seus olhos faiscarem. Conhecia este tipo de
valentia de outras eras quando das minhas brigas eternas e quase desisti de
perguntar. – Moço, como faço para chegar na Floresta do Diabo? Ele riu. Pegue o
trem. Desça em Baixo Guandu. Suba o Rio Turvo por oitenta quilômetros. Quando
avistar uma garganta entre duas montanhas, vá por baixo mais dez quilômetros.
Quando ela terminar irá ver uma imensa floresta subindo aos céus e densa por
causa do nevoeiro. É lá. Mas menino, nunca vá lá. O Selvagem da Cabeça Branca
dizem nunca deixou ninguém vivo e os que conseguiram fugir ficaram com sequelas
no corpo morrendo em poucos meses. Virou-me as costas e sumiu na Rua do Sumidouro
e nunca mais o vi. À noite minha patrulha tinha marcado uma reunião na sede. Pretendíamos
acampar nas férias de julho e poderíamos escolher um bom local e quem sabe
fazer as grandes pioneirias que sempre planejamos e não fizemos. Poderíamos
ficar oito dias acampados.
Enquanto
todos discutiam lembrei da conversa do Homem do Bigode Rastapé que me contou a
história fantástica. Contei para a Patrulha. Riram e não deram atenção. Tentei
de todo modo motivar a irmos lá. Foi Israel que colocou a questão crucial –
Olhe Bitelô, Oitenta quilômetros rio acima, depois mais vinte. Você sabe. Sem
trilhas, matas dos dois lados e com corredeiras tem de ser a pé. Pelos meus
cálculos não conseguiremos andar mais que vinte quilômetros por dia, e olhe lá.
Só aí seriam cinco dias para ir e mais cinco para voltar. Nem sabemos o que
vamos encontrar. Claro que na volta uma jangada pode nos trazer mais rápido,
mas e então? Subir uma montanha que ninguém nunca subiu? E se for verdade esta
historia do tal Selvagem esfolador? Não somos heróis. Nem sabemos o que vamos
encontrar.
Tentei de
todo modo motivar a turma. Não estava conseguindo convencer aqueles seniores
destemidos. Deram todo tipo de desculpa. Parece que não era a minha Patrulha
que não recusava nenhum desafio. Voltei para casa frustrado. No dia seguinte
Pedrinho me procurou em casa cedo ainda – Olhe Bitelô, não dormi a noite. Só
pensando nesta história do esfolador. Encontrei com o Israel e ele me disse a
mesma coisa. Acho que devemos nos reunir hoje na sede e conversar de novo sobre
isto. Dito e feito. A Patrulha conversou por horas. No final tudo planejado. Achávamos
que quinze dias seriam suficientes. Os seis valentes seniores da patrulha
Cascavel iriam entrar em ação novamente. Que nos esperasse a Floresta do Diabo.
E que se danasse o Selvagem da Cabeça Branca. Ele ia conhecer uma turma da
pesada! A aventura ia começar e que aventura foi meu Deus!
Seu Josué
era o Chefe da Estação da Estrada de ferro. Já nos conhecia. Aproximou-se e
perguntou – Para onde vão desta vez? Até Baixo Guandu Seu Josué. E de lá? - Bem
vamos tentar chegar até a Floresta do Diabo. Isto é vamos subir o Rio Turvo. –
O rio eu conheço, mas esta floresta não. Cuidado com o Rio. Quando menos se
espera ele sobe até dois ou três metros do seu nível. Gente boa seu Josué. O trem parou na
plataforma. Subimos na Segunda Classe e logo ele partiu. Seriam por volta de
três horas de viagem. Se tudo corresse bem chegaríamos em Baixo Guandu lá pela uma
da tarde. Foram preparativos imensos. Nossa ração que estávamos acostumados era
de no máximo dez dias. Ração para quinze ou vinte não sei não. Mas achamos que
encontraríamos pelo caminho muita verdura, peixes e quem sabe algum animal ou
ave para matar a fome e economizar nosso farnel.
Éramos
seis. Eu, Romildo, Fumanchú, Taozinho, Israel e Pedrinho. A Patrulha estava
completa. Todos foram segunda e Primeira Classe quando escoteiros e agora
muitos portavam a eficiência II. Não havia pata tenras. Passamos juntos por
poucas e boas. Na viagem o espírito era nota dez. Cantamos, contamos “causos”,
até umas piadinhas que não podiam ser contadas para os lobinhos. Meio dia e
meio avistamos Baixo Guandu. Uma cidade de mais ou menos quinze mil almas
naquela época. Hoje não sei. Antes de o trem entrar na estação avistamos o
pontilhão do Rio Turvo. Descemos e como sempre atraiamos atenção. Não dava
tempo para conversar. Partimos. Um trecho de estrada estadual e logo uma
carroçável margeava o rio. Sabíamos que ela iria desaparecer em breve. Dito e
feito. Uma mata rala, e logo uma mata fechada. Que dificuldade para dar cada
passo. O rio naquele trecho era manso. A tarde veio chegando. Precisávamos de
um lugar para arranchar. Sabíamos que não podíamos ficar próximo à margem.
Pelos menos uns trezentos metros. As muriçocas nos comeriam vivos. Experiência
de outras épocas.
A
primeira noite foi calma e assim a segunda. Mas cada dia mais difícil ficava a
caminhada. Na tarde do terceiro dia avistamos uma cachoeira enorme. Época da
piracema. Um espetáculo a parte. Quem já viu sabe como é. Lindo! A luta dos
peixes para subir rio acima é algum de espetacular. Escolhemos um belo piau de
dois quilos e o Fumanchú nos fez uma gostoso assado de peixe na brasa. No dia
seguinte demoramos mais de três horas para escalar a cachoeira. Não foi fácil.
No quinto dia achávamos que estávamos atravessando o inferno. Que dificuldade
meu Deus! Cada metro mais e mais um emaranhado da floresta. Naquele dia acho
que não andamos cinco quilômetros. Se continuasse assim não chegaríamos a tal
Garganta. No sexto dia a mata ficou rarefeita. Tiramos o atraso. Na manhã do
sétimo dia avistamos a Garganta. Fácil de percorrer. Um gostoso riacho
pedregoso e raso com águas límpidas. Na tarde daquele dia avistamos a famosa
Floresta do Diabo. Imponente. Grandiosa. Misteriosa. Uma nevoa encobria o seu
topo. Resolvemos dormir e prosseguir no outro dia.
Levantamos
cedo. Graças a Deus que durante os sete dias não choveu. Não foi preciso usar
as lonas. Dormimos sob as estrelas. Pela manhã após um cafezinho partimos. Não
havia como escolher uma local para a subida. Por toda parte arvores gigantescas
e vegetação encobrindo tudo. Fomos em frente. Fumanchú nos disse que nossa
ração daria para mais quatro dias. Se pudéssemos encontrar alguma caça ou
pescar seria bom. Pescar ali não dava. A subida ficou íngreme. Três passos a
frente um atrás. Quem sabe encontraríamos algumas frutas silvestres pensava
enquanto andávamos. A mata fechada. Muito fechada. Começou a escurecer. Abrimos
uma pequena clareira e dormimos, não antes de uma gostosa sopa de batata. Um
bule de café nas brasas umas batatas doce e a noite chegou firme. Pegávamos no
sono com facilidade.
Acordei com
o dia raiando. Vi o Romildo e o Fumanchú de pé, sem se mexer e olhando firme
para frente. Tremi na base. Um índio enorme. Olhe mais de dois metros. Grande e
sem ser gordo era descomunal. Cabeleira longa e totalmente branca. Sem barba.
Olhos negros fitando-nos. Não disse nada. E agora, seria o tal Selvagem da
Cabeça Branca? Vai nos esfolar e matar? Israel e Tãozinho se levantaram.
Pedrinho sentou e se assustou. Era o menor de todos. Todos se aproximaram e
ficamos juntos. Romildo o Monitor pegou seu bastão. Arma? Que nada, era leve e
nem como porrete quebraria o galho. Calças começaram a ficar molhadas. Ele fez
um sinal como dissesse – Venham comigo. Fazer o que? Juntamos nossas tralhas e
fomos com ele.
Gente, o
caminho era uma surpresa. Ele nos levou por uma encosta, onde uma trilha mínima
e tendo como esteio um cipó enorme, atravessamos. Do outro lado uma pequena
ponte pênsil que ele puxou não sei de onde, passamos e chegamos próximo a um
platô, enorme. Avistamos algumas Ocas e uns vinte índios nos cercaram. A
maioria mulheres e crianças. Ninguém falava nada, ninguém sorria. O tal da
cabeça branca nos mandou entrar em uma oca. Enorme. Grande mesmo. Cabia lá toda
a tribo isto é pensei que poderia ser uma. Um pequeno fogo no meio e que cheiro
ruim. Ruim mesmo. De que seria? Romildo disse que mataram um porco do mato e
ele estava em um canto da oca. Só podia ser ele. O tal da Cabeça Branca nos
mandou sentar. Todos sentaram. Ele humildemente, o que estranhei começou a
falar:
- Eu e os
demais da tribo estamos pensando o que fazer com vocês. Não gostamos de
estranhos. Eles nos fazem mal. Todos que aqui vem nós o matamos ou esfolamos.
Um aviso para ninguém vir. Há muitas e muitas luas seus irmãos brancos mataram
quase todos da minha tribo. Morávamos próximo a Aimorés, quase junto a Lagoa da
Traíra. Éramos de paz. A sua FUNAI nos deu terras e fazendeiros nos tomaram.
Uma noite entraram em nossa aldeia. Mataram quase todos. Eu, filho do cacique
Lobo Branco, Pontiac filho do bravo Amanaki, Iraci minha namorada na tribo e
filha de Caíare estávamos caçando. Quando chegamos vimos todos mortos e os
brancos saqueando tudo. Nos escondemos. Levaram os corpos e os enterraram na
entrada da Aldeia, mais de cinco quilômetros onde morávamos. Choramos muito.
Mais cinco crianças correram até nós. Estavam vivos. Eu tinha dezesseis anos e
era o mais velho. Resolvemos fugir.
-
Descobrimos esta floresta depois de dias de viagem pelo Rio Turvo. Achamos que
quase ninguém viria aqui. Na Garganta Cajuru montamos um ponto para observar
todos que se aproximam. Voces passaram por ela. Vimos todos os seus passos. São
meninos como eu era. Sei que vieram por aventura. Eu também fui assim. Hoje
somos menos de trinta. Iraci me deu oito filhos. Paramos. Não podemos crescer
mais. Um livro sagrado foi escrito. Todos sabem o que diz lá. Aqui temos muita
água e fizemos uma represa para criarmos peixes. Temos uma horta com muitas
verduras. Conseguimos mudas de cana, de mandioca e de abóbora. É nosso
sustento. Não queremos riquezas e aqui sabemos do ouro tão ambicionados por
voces. Amanhã vamos decidir seus destinos. Ficarão na Oca de Pontiac. Não saiam
de lá.
Saiu e
fomos levado por Pontiac até sua morada. Custamos para dormir. Pela manhã eu já
estava de pé quando uma indiazinha de uns doze anos entrou e disse que o
Cacique Capotira (o tal da cabeça branca) nos chamava. Em uma roda de índios
nos entregou nossas mochilas e algumas frutas. Disse que podíamos ir embora.
Não pediu para ficarmos calados só disse que se contássemos a história da tribo
e onde estávamos ele sabia que não iam durar muito. Deu a cada um uma pepita de
ouro. – Façam o que quiserem. Pegamos nossas mochilas e partimos com ele a
frente. Levou-nos até a Garganta Cajuru. Mostrou-nos muitas piteiras secas.
Disse que com oito poderíamos descer o rio facilmente. Quando a corredeira
aumentar saiam da água. A cachoeira esta próxima. Partimos.
Para
dizer a verdade eu chorei. Gostei demais da tribo. Apesar de pouco tempo ficamos
orgulhosos em conhecer todos. Cinco dias depois chegamos em Baixo Guandu. Eu,
Romildo, Fumanchú, Taozinho, Israel e Pedrinho fizemos um juramento de não
contar para ninguém. Foi uma das nossas maiores aventuras. Sempre quando
acampávamos a noite em fogo de conselho ou em uma simples conversa ao pé do
fogo, rememorávamos com saudades daquela aventura que ficou gravada em nossa
mente para sempre. Os anos passaram e eu passei com eles. Há vinte anos atrás
encontrei com Romildo. Sei que já foi para o grande acampamento. Disse-me que
um dia soube pelos jornais a história da tribo dos Cabeças Brancas. O governo
deu a eles as terras e nunca mais foram importunados por brancos.
Acampamentos, excursões, grandes aventuras. Elas ficam gravadas para
sempre em nossa mente. Assim são os escoteiros. Não sabem se esconder em sede.
Partem em buscas de suas aventuras. Seja ela simples, seja ela com grande
perigo. Não importa. Eles sabem até podem ir. Saudades de Capotira, de Pontiac,
de Iraci e daqueles amigos sinceros que fizemos. Espero que até hoje estejam
felizes, pois lá em sua tribo sentiam-se libertos, e só o sol e a lua sabiam como
a felicidade fazia parte de todos aqueles Cabeças Brancas. Quem sejam muito
felizes. E as pepitas de ouro? Risos. Com ela papai terminou nossa casinha na
Pastoril!
O amor vive de repetição. Cada um de
nós tem, na existência, no mínimo uma grande aventura. O segredo da vida é
reeditar essa aventura sempre que seja possível.
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