Lendas escoteiras.
Fuligem, o meu cinto
Escoteiro brincalhão.
Nem vem que não
tem. – Não tem o que Fuligem? – ele me olhava com aquela cara de “besta” que eu
conhecia há muitos e muito anos. – Pode tirar o cavalinho da chuva. Não vou
para a reunião com você hoje nem que a vaca tussa! – O que é que eu fiz
Fuligem? – O que fez? Só um paspalho escoteiro como você faz uma pergunta
desta. Seja homem meu caro. Aceite que você é um idiota! – Fiquei a olhar o
Fuligem. Nem sabia ao certo quando ele falava sério ou estava-me gosando.
Pensei com meus botões o que tinha feito. Olhei bem para fuligem. Estava limpo.
Na quarta usei metade da pasta Kolynos para fazer a melhor limpeza que tinha
feito. O couro estava perfeito. O que ele queria agora? – Olhei para ele e o
“pestilento” começou a rir. – Fuligem! São quase uma hora, você sabe que não
gosto de chegar atrasado! Tá bem! Desta vez eu vou, mas na próxima se não
engraxar o sapato não conte comigo. Só ando com Escoteiros que se orgulham do
uniforme!
Sempre foi assim. Desde que comprei o Fuligem
na loja da capital pelo correio. Eu tinha um ano de promessa e custei a juntar
o dinheiro para comprá-lo. Assim foi como meu chapéu de três bicos, com meu
bastão de ponteira de aço, com meu cantil francês, com meu canivete suíço e com
minha faca mundial. Meu uniforme e lenço mamãe fazia, mas o resto eu ralava
para comprar. Engraxando sapatos, limpando quintais, ajudando seu Manezinho no
Armazém fazendo entregas. Olhei para meu Vulcabrás e ele não estava sujo. Não o
engraxei na semana, achei que não precisava. Fuligem não perdoava. Ele gostava
de massacrar. Não esqueço o dia que fui para a sede, já nos meus treze anos e
ao passar na vendinha do Seu Nestor para comprar balas de hortelãs um freguês
dele olhou minhas pernas e disse – Lindas! Se você fosse uma moça a gente ia
conversar! Fuligem virou bicho. Tire-me logo e dê uma surra neste filho da mãe!
- Não Fuligem é o Vadico meu amigo de escola.
E quando mamãe
fez um uniforme novo? As passadeiras ficaram estreitas. Ele não conseguia
passar. – Meu pai do céu! Ele dizia. Nesta casa só tem Jerico ou Asno? Tal mãe
tal filho? Naquele dia fechei a cara para ele. Ele sabia que tinha ido longe
demais. Abaixou cabeça como se estivesse envergonhado. Fui na caixa de sapato e
retirei outro cinto Escoteiro que tinha de reserva. Não era tão bonito como
Fuligem, mas ele precisava de uma lição. Quando coloquei o cinto ele gritou –
Não, por favor! Perdoe-me, eu falei demais! – Desta vez nem liguei e fui para a
sede escoteira. Fui triste mesmo sabendo que o Segunda Mão era um bom cinto.
Calmo, educado e ponderado, pois tinha sido de um Escoteiro antigo que me
presenteou. Acho que tinha mais de quarenta anos, falava pouco, não reclamava
não chingava e nem me desafiava como Fuligem.
Fuligem quando
chegou da capital ficou todo prosa. Novo em folha, couro brilhante com flor de
lis, metal com um brilho de dar inveja e Foi logo dizendo - É melhor saber
antes que não gosto de Escoteiro babão! Ou você está bem uniformizado ou não
está. Sou exigente, meião nos trinques, calça e camisa bem passada, o lenço bem
dobrado e o anel até na gola. Chapéu meu amigo tem de estar com as abas largas.
Se torto me esqueça! – No início não liguei para ele. São coisas de novatos
ainda sem aquela fleuma de um bom mateiro. Eu já conhecia este tipo de prosa.
Foi com meu chapéu, com meu lenço e meu bastão. Mas o tempo foi passando e
fuligem aprontando. Era minha calça sem passar, meu lenço mal dobrado, meu
chapéu torto, Fuligem não deixava nada passar. Nos acampamentos se chovia ele
gritava – Corra seu idiota, se o couro molhar vai doer prá dedeu!
Lembro de um fato
interessante em Santa Mônica uma cidadezinha lá pelas bandas do Rio Tico-Tico.
Nem lembro o que fui fazer lá. Armamos barraca em um campinho de futebol na entrada
da cidade e fora alguns garotos olhando de longe não vi mais ninguém. O dia
acabava e escurecia. Depois do jantar fomos dormir, pois no dia seguinte
iriamos dar uma chegada em Campos Gerais. Dormi feito um anjo, mas ao acordar
cadê meu cinto? Mãe de Deus levaram o fuligem. Não me dei por vencido, pois
sabia que ele ia berrar feito um bode preso no toco da porteira. Não deu outra,
com meu cavalo de aço (bicicleta) rodei a cidade rua por rua. Em uma delas ouvi
a voz dele – Socorro! Vado sua besta, me tire daqui! A mãe do menino ficou
envergonhada e pediu desculpas. Fuligem ria a mais não valer. “Num” falei que
ele ia me encontrar, menino dos infernos! Saí dali correndo.
O tempo passou,
um dia tive de dizer a ele que precisa trocar o couro. Ele berrou, gritou e
disse que preferia morrer. Manfredo um sapateiro disse que podia fazer um
recauchutagem sem mudar seu estilo anterior. Deixei-o na sapataria e um dia
depois Manfredo veio me procurar dizendo que eu levasse o cinto urgente. Ele
não aguentava mais a faladeira dele. Nunca viu um cinto falante e igual aquele
ele queria distancia. Fuligem envelheceu o couro. Pediu para aposentar, pois
preferia morrer a trocar o couro. Foram mais de quarenta ano com Fuligem. Está
comigo ainda, guardado no meu quarto e pendurado em um local gostoso, onde ele
pode ver a janela e os passarinhos cantarem no Pé de Oliveira que tenho no meu
quintal.
Hoje já Velho eu
lembro dos meus amigos. Amigos que foram meus companheiros de aventuras, meu
bastão com ponteira, meu chapéu de três bicos, meu lenço verde e amarelo
encantado, meu lampião vermelho e Fuligem. Deixo minha faca meu cantil e meu
canivete suíço sem comentar. Eles não falavam muito, mas também foram
companhias de aventuras que nunca mais os esquecerei. Pelo menos uma vez por
semana abro minha caixa de guardados. Lá estão todos eles menos fuligem e o
chapéu de três bicos que sempre estrão pendurados na parede. Nunca durmo sem
rezar e eles sempre me acompanham. Sei que durmo pesado. Sei que eles conversam
a noite toda. Sei que relembram o escotismo do Vado o Escoteiro que eles
fizeram parte. Mas todos eles fizeram parte da minha vida. Se um dia me for já
pedi a minha querida Celia que os guarde com ela. Não coloque no meu túmulo. Se
eles estiverem de acordo que os doem para um Escoteiro jovem, que tem amor as
suas tralhas escoteiras como eu tive e que os ame como eu os amei!
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