Conversa ao pé do fogo.
Olimpíadas Escoteiras inesquecíveis.
Era o meu quarto acampamento. Tão logo passei para a tropa de escoteiros
as atividades aventureiras ao ar livre se multiplicaram. Conhecia bem a Mata do
Quati, um local excelente para acampar, com varias aguadas, e o melhor, uma
bela cachoeira que hoje deu lugar a uma pequena hidroelétrica que abastece
satisfatoriamente a cidade onde morávamos. Lembro bem na época da piracema,
onde nos divertíamos em pegar peixes com as mãos, que se multiplicavam na
subida complexa de altos e baixos, rindo, brincando entre as pedras, com aquela
nevoa a tomar conta de toda orla da cachoeira. Sempre que ali acampávamos não
faltavam as fritadas de lambaris, piaus, corvinas e tantos outros peixes, feitas
pelo nosso cozinheiro da patrulha. Um expert em cozinha de campo.
Podíamos escolher a vontade onde montar o nosso campo, pois
beirando o Rio do Morcego, a mata deixava belas clareiras, mas a preferida era
próxima da cachoeira, claro sem considerar o Córrego do Marmelo, que
desembocava no rio, formando um remanso onde nos banhávamos de manhã e a tarde.
As patrulhas muitas vezes ficavam até 200 ou 300 metros distantes uma da outra.
O barulho diabólico e magnífico da queda d’água era como se fosse uma melodia
para os nossos ouvidos e a noite, o som entre as arvores trazia toadas cantigas
que a plenos pulmões desafiávamos as demais patrulhas, num quebra coco frenético.
Não tenho certeza, mas a cachoeira do Sonho não era muito
conhecida da comunidade local. Pouco visitada. Talvez pela localização, afastada
da cidade por mais de 10 quilômetros e precisávamos andar mais quatro mata adentro.
Através de pequena trilha chegávamos até ela. A queda d’água com mais de 20
metros de altura, com aproximadamente 50 de extensão, caindo de um só salto,
formava um grande lago de águas revoltas todo coberto por uma névoa algumas
vezes densa outras vezes não. Lembro que sempre quando acampávamos ali, não sei
se por tradições criadas por outras patrulhas mais antigas que devem ter
iniciado, no penúltimo dia ininterruptamente, realizávamos nossas olimpíadas, o
que na época chamávamos de competição escoteira, onde individualmente e sem
representar as patrulhas, fazíamos diversas provas bem diversa das hoje
realizadas.
Eu não era bom em todas. Mas a prova do macaco sempre me deixava
ou em primeiro ou segundo. Na prova da machadinha e da faca, também não era tão
ruim. Não era bom na prova dos nós, da escalada, da travessia e da rodada dos
pneus, fora o medo do salto na cachoeira amarrado em uma bóia. Quando os
seniores resolveram participar e foram aceitos, logo a alcatéia com a aprovação
do Akelá foi incluída na grande olimpíada anual com atividades próprias. Foi
necessário fazer um regulamento, onde os lobinhos, escoteiros e seniores
pudessem participar de acordo com a idade, peso e altura. Na época não entendi
bem, mas confiávamos nos nossos chefes e nunca em tempo algum discordamos de
uma ou outra vitória de alguém não merecida. Escolhíamos as provas que iríamos
realizar, e pelo tempo não podiam ser mais do que três ou quatro.
Toda a chefia e o Chefe do Grupo sempre estavam presentes neste
dia. Eram os juízes e quem nos entregava os prêmios, tais como uma faca nova,
um canivete escoteiro, um chapéu Prada de abas largas, um lenço de outro grupo,
um distintivo qualquer, ou mesmo medalhas simples, bronze, prata ou ouro, como
a dizer que éramos os mais perfeitos naquela contenda anual. A data programada
para esta atividade escoteira era aguardada com ansiedade. Não tive muitas vitórias
e meus prêmios eram raros, mas a diversão era garantida. O local, a Mata do Quati
abarcava todos os seus predicados, satisfazendo as necessidades técnicas,
mateiras e como tradição não podia ser alterada. Ali começou e ali teria o seu
término.
Não sei quando iniciou a participação dos Grupos Escoteiros das
cidades vizinhas. Não lembro bem, mas acho que a primeira idéia foi dada quando
acampamos na cidade do minério, onde se localizava uma grande ferrovia que
extraia minério de ferro e manganês em grandes quantidades e em enormes
comboios de vagões puxados por ate cinco locomotivas eram transportadas até o
porto, há mais de 800 quilômetros de distancia, situado em um estado vizinho. A
Ferrovia sempre nos oferecia um vagão especial quando acampávamos em áreas
próximas da estrada de ferro, (amabilidade cedida devido a um ex-escoteiro
atual diretor de operações) a ponto de parar fora dos locais programados para
descer. Isto em toda a sua extensão bastando planejar com antecedência. Ele, o
nosso vagão era o ultimo do comboio.
Foi em um verão quando lá acampamos (na cidade do minério), e
junto com o grupo escoteiro local muito amigo de todos nós, que participamos de
uma olimpíada pela primeira vez. Sempre fazíamos acampamentos em conjunto, mas
com atividades próprias de campismo e confraternização. De surpresa nos
convidaram para participar de uma olimpíada no ginásio local, onde se
conheceria o melhor corredor, nadador, saltador e outras modalidades que pouco
conhecíamos. Claro que aceitamos, mas foi uma derrocada sem tamanho. No
encerramento conseguimos acho eu umas oito medalhas contra mais de 50 do grupo
da cidade.
Antes de retornarmos, reunimos todos os monitores inclusive os
seniores e um de nós que não lembro quem, achou que aquela derrota tinha que
ser revertida. Deu a idéia para que convidássemos o Grupo Escoteiro da Cidade
do minério para participar da nossa competição anual, e daríamos a eles
oportunidades para se preparem, pois não deram esse gosto para nós. Claro que
aceitaram. E até que não foi ruim. Reunir dois grupos, mais de 50 escoteiros,
25 seniores e 40 lobinhos na Mata do Quati foram fantásticos. As competições
foram realizadas com companheirismo e respeito. Era ponto de honra os
anfitriões fornecerem toda a alimentação aos visitantes. Isto sempre acontecia
em qualquer cidade que possuía um Grupo Escoteiro.
Na primeira Olimpíada executadas em conjunto, demos um verdadeiro
banho, conquistando mais de 70% dos prêmios. No entanto, isto foi mudando
através dos tempos. Os visitantes mais e mais se preparavam e não eram
considerados uns pata tenras como dizíamos. Quando mudei da cidade em fins de 63,
havia mais de três grupos que participavam se tornando uma tradição distrital.
Não sei atualmente se ainda persiste, mas as competições escoteiras realizadas
e consideradas hoje como olimpíadas olímpicas não nos traziam como as de antes,
lembranças vivas de nossa vivencia mateira e técnicas escoteiras forjando
aventuras reais. Acredito que podem existir vários grupos que realizam ou
participaram de tal atividade. Pode ser que muitos grupos em nosso país tenham
conhecimento de tal intensidade técnica e mateira. E isto é extraordinário.
Eram marcantes e facilitavam sobremaneira o desenvolvimento nas provas de
classe.
Algumas provas apostilo abaixo para exemplificar o que fazíamos e
outras tantas não são aqui descritas para não atropelar novas idéias que
surgirem com a leitura deste artigo:
- Subir em menos de um minuto em uma árvore de até 8 metros,
descer pelo volta do salteador em 15 segundos. Não era para qualquer um;
- Fazer 25 nós escoteiros ou de marinheiros em seis minutos. Até
que era fácil;
- Nadar de um lado ao outro do Rio do Morcego, (60 metros) no tempo
máximo de 10 minutos com águas revoltas. Era um perigo constante;
- Descer o rio e cair na parte mais baixa da cachoeira preso a uma
câmara de ar. Adrenalina pura;
- Receber uma caneca média, um pouco de pó, açúcar e três palitos
de fósforos para fazer um café em 8 minutos sem ter nada preparado. Não era tão
difícil;
- Participar da prova da faca e machadinha, com lançamentos a
distancia e acertar na melancia ou mamão do campo, não era tarefa simples. Só
para os mais treinados;
- Cortar uma tora de madeira de mais ou menos seis polegadas com
um facão em menos de 3 minutos. Considerado tarefa fácil;
- Ir e voltar numa falsa baiana de mais ou menos 6 metros de
comprimento, por cima do Córrego do Marmelo em dois minutos. Sorrisos
constantes dos primeiras classes;
- Transmitir sem ajuda de um “espelho” por semáforas 30 ou 40
letras por minuto. Só para bons sinaleiros;
- Construir uma armadilha para caça de animais ou pássaros que
funcionasse em menos de 10 minutos. Prova considerada relativamente simples;
- Montar uma barraca de olhos vendados em 4 minutos. Facílimo para
os escoteiros pata tenras;
- percorrer uma trilha de 300 metros em semicírculo com sinais de pistas
simples em 12 minutos. Para lobinhos. Os escoteiros percorriam em terreno
pedregoso tentando achar pegadas feitas com botinas militar do chefe Do Grupo;
- Encontrar pelo cheiro uma onça pintada, com os olhos vendados.
(a onça era representada por um cão, muito amigo nosso e colocávamos amarrado
em seu corpo sacolinhas de alho picado com gordura vegetal). Só mesmo para os
velhos mateiros;
- Preparar um sinal de fumaça recebendo dois palitos de fósforos com
fogo verde e transmitir um S.O.S. em 4 minutos. Não era muito simples;
- Carregar nos ombros a moda escoteira outro escoteiro da sua
altura e peso por 200 metros em 5 minutos. Tarefa para os melhores corredores;
- Descobrir dentre oito feridos espalhados em um raio de 150
metros, quais as tipóias corretas em 2 minutos. “Beleza”;
- Fazer uma pequena cabana para abrigo de dois escoteiros com mãos
limpas só com folhas e galhos secos em 15 minutos. Muitos faziam em 06 minutos;
- Carregar um peso ou sacos de pedras de aproximadamente 50% do
seu peso, sem usar as mãos atados com uma grande tipóia presa à cabeça
(usávamos um pequeno lençol) em uma distancia de 100 metros em 05 minutos.
Considerado prova simples;
- Discursar como um palestrante, alto e em bom tom sem
interrupção, a Lei Escoteira do último ao primeiro artigo. Ou de dois em dois
numero par, terminando em numero impar. Sem erro era de uma bondade só, afinal
saber a Lei era obrigação;
- Ficar amarrado a uma árvore em uma distancia de 12 metros, para servir
de alvo onde dois escoteiros atirariam 20 tomates maduros, distantes mais ou
menos 20 metros em uma lata acima da cabeça. Tempo de duração – 5 minutos. Uma prova
de coragem;
- Mergulhar em um remanso, com um ou dois metros de profundidade e
ficar por 05 minutos usando um canudinho do galho (pé) da abóbora ou do mamão.
Uma festa na primeira vez;
- Montar uma fogueira de Fogo do Conselho, para duração de hora e
meia, não necessitando de manutenção, em 20 minutos. Só mesmo para aqueles com
a especialidade de acampador;
- Mostrar na prática como é o passo escoteiro, percurso de Giwell
em uma área de mata nativa por uma hora. Na Mata do Quati poucos conseguiam;
- Receber um recado verbal no inicio das atividades e ao final
explicitar ao chefe o que foi falado sem esquecer nenhuma palavra. Poucos
conseguiam;
Durante uma jornada de 20 minutos na Mata do Quati, identificar
pelo menos seis pássaros diferentes e no retorno desenhar dois deles e imitar
pelo menos três com seus cantos na floresta. Dificílimo;
Com o passar dos anos, outras provas foram acrescentadas. Sempre
provas técnicas treinadas e aprendidas na arte de aprender a fazer fazendo.
Muitas foram esquecidas e substituídas, pois não tinham mais o sabor da
aventura ou por repetirem sempre os mesmos ganhadores. Todas elas, criadas por
nós tinham seu encanto pessoal. A recompensa pelo primeiro lugar incluía o gosto
da vitória. Sempre foram as patrulhas que deixavam tudo preparado quando da
realização das Olimpíadas. Os escotistas eram os observadores e aqueles que
serviam de juiz. Não gostávamos de receber tudo pronto, pois isto nada
significava em uma avaliação de nossa capacidade técnica.
O tempo passou. Vi outro dia grupos escoteiros participando de
olimpíadas programadas para eles, uma copia dos métodos olímpicos hoje realizados.
Pelas fotos vi que estavam compartilhando com alegria e júbilo. Participei na
década de 80/90 de olimpíadas assim programadas, diferentes daquelas do passado,
no distrito em que atuava. A participação era maciça e muito bem vista por
todos os participantes. Mas sempre me lembro do Rio do Morcego, da Mata do Quati,
das grandes competições lá acontecidas. Do barulho da cachoeira do Sonho que
sussurravam sons repicantes e harmoniosos aos nossos ouvidos. Foram tempos que
nunca serão esquecidos. Soube que um
grande aeroporto foi construído ali. Um Alto Forno siderúrgico que se alimenta
com carvão vegetal também. Acredito que a mata se foi. Quem sabe substituída
por uma floresta de eucaliptos.
O rio a cachoeira represada formando um grande lago e o córrego
devem ainda existir. Espero que não estejam poluídos. Todas as lembranças são
substituídas pelo presente e não podemos fugir da realidade. Acredito que ainda
existem outros rios, matas e córregos sem os festivos temas que permaneceram na
modernidade da poluição universal. Faz parte dos novos tempos. O escotismo não
pode e não deve aceitar tal conjuntura. Acredito e quanto a isto não tenho
nenhuma dúvida, que existe um local parecido com o Rio do Morcego e o Córrego
do Marmelo em qualquer lugar deste nosso imenso território, onde grandes
atividades escoteiras acontecem ou estão sendo desenvolvidas. Seja em forma de
competições ou de olimpíadas, mas utilizando as técnicas escoteiras hoje tão esquecidas.
Quem sabe, muitos como eu poderão quando envelhecer, lembrar que o
escotismo foi e sempre será visto como uma grande aventura. Cheio de surpresas
e uma vida mateira magnífica, como uma grande escola da vida, que deu a mim e a
todos que participam ou participaram deste notável programa, um orgulho
próprio, sem soberba, deixando um rastro de troféus fantásticos, conquistados
com o passar dos anos, que ficarão marcados para sempre em nossa memória.
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