Crônicas
de um Velho Escoteiro.
A
rede.
(uma
história real)
... - Um homem não deve ser boi de rebanho que vai
empurrado pra frente sem ver: - Se firma o caráter, faz sua tarefa. E rema a
canoa para onde quiser. Sem medo, ele olha os escolhos que enfrenta: Bebida,
mulheres, o jogo e os espertos. Não vai encalhar, porque as rochas contorna.
Remando a canoa com os olhos abertos.
· Até aquele verão de 1953 eu não tinha
dormido em uma rede. Nunca pensei em ter uma, pois acreditava que dormir no
chão, com folhas secas a servir de forro eu dormia Quando necessário o capim
servia de colchão. Dois saco de estopa quebravam o galho melhor e era mais
escoteiro. Possuir uma rede? Não tinha sonhos assim. Nem sabia o que era um sleeping bag (saco de
dormir). Eu tinha
facilidades para dormir em qualquer lugar. Dormia em trilhas em subidas, com
pedregulhos em cima das árvores agachado sentado ou não. Dormia mesmo. Sono dos
justos. Qualquer toco de madeira servia de travesseiro. Dormia muito bem
obrigado. Dormi até em uma barraca suspensa, em cima do estrado de bambus sem
nada. Não precisava esticar as canelas, bastava ter sono e pronto. Dormir
encostado em uma árvore era divino e um dia dormi em pé caindo como uma abobora
no chão quando o sono bateu forte. Quase nunca usava lençol ou fronha de casa.
Só uma Capa Negra que ganhei do meu avô. Dormi em cima de pedras pontiagudas em
várias montanhas. Sem cobertor dormi até em locais frios, mas... Um dia
acampamos com alguns escoteiros do norte. Gente boa, boníssima. Alegres um
sotaque delicioso.
Apareceram em nossa cidade como se
fossem transportados por uma nave interplanetária. Turma de primeira.
Disseram-nos que estavam fazendo uma jornada e a pé ou de carona pretendiam ir
até o Rio de Janeiro. A Rio Bahia estava no auge, boa parte asfaltada. Quando
os vi na Av. Prudente de Morais dei um belo de um sorriso. Aproximei-me e em
alto e bom som gritei! Sempre Alerta! Na melhor pose que conhecia. Eles me
olharam espantados. Eram cinco. Não lembro os nomes. Estavam vindos de Jequié
na Bahia. Logo apareceram outros escoteiros do nosso grupo. Lá fomos nós com
eles até a sede. Causos e causos. Isto naquela época era comum. Nem imaginam a
alegria em ver Escoteiros de outras plagas. Ninguém ficava ao relento, pois
todos querendo os levar para dormir em suas casas.
Levei um e outros levaram os demais. Tempo bom, era assim na época. Como
se diz hoje: - “Fraternidade sem fronteira”. Ver alguém de outro grupo era uma
apoteose. O que foi para minha casa não quis dormir em meu quarto. Aproveitou o
pé de manga e o pé de abacate e ali amarrou sua rede. – Você vai dormir aí? –
Porque não? É minha cama preferida! Calei-me. Depois de vê-lo montar a rede fui
para o meu quarto e fiquei pensando em dormir em uma rede também. Fácil de
colocar na mochila seria uma mão na roda. De vez em quando olhava pela fresta
da porta ele dormindo na rede. Que inveja eu estava sentido. Ficaram quatro
dias e partiram em uma manhã ensolarada. Ficamos muito amigos e quando partiram
senti saudades.
Coloquei na minha mente que devia ter uma rede. Nas lojas em minha
cidade custava uma nota. Na Casa Silva uns cento e cinquenta em dinheiro de
hoje. Não importava. Chegava da escola, pegava minha caixa de engraxate e
partia para o centro da cidade. Demorou quatro meses, mas consegui a quantia
necessária e comprei a rede. Levei para casa. Amarrei-a no pé de abacate e o de
manga. Fiquei ali um tempo enorme admirando minha nova amiga. Sentei me
estiquei e deitei. Gostoso, aos poucos fui me adaptando. Bom demais! Meia hora
depois começou o vira, vira. É sempre assim para os pata tenras em redes.
Sempre virando para lá e acolá. Danada de rede. Não seria fácil acostumar. Na
semana seguinte fomos acampar na Serra da Gamboa. Ia matar todo mundo de
inveja. Levei a rede. Lá chegando todos assustaram. Uma linda rede. – Vais
dormir aí? – Claro, melhor que no chão duro! Um frio danado. A manta não cobria
tudo. Gelava por baixo. Fiz um fogo próximo. Nada. Fiz outro do lado contrário.
Nada.
Lá pelas três da manhã não aguentava
mais. Não tinha dormido nada e sempre fazendo foguinho aqui e ali. Não queria
dar o braço a torcer com meus amigos de patrulha e voltar para a barraca. Seria
um vexame. Eles riram quando disse que ia dormir ali e tinha de dormir. Quatro
da manhã e o frio piorou. Já tinha feito duas fogueiras uma de um lado e do
outro lado da rede. Um clarão iluminou a mata. Um trovão trovejou no céu. Raios
brincavam de cortar árvores pelo meio. A chuva caiu torrencialmente. Fiquei ali
na rede. Tinha dito que ia dormir nela e tinha de dormir. Meus amigos dormiam
sono solto na barraca e o idiota lá na rede molhado e na chuva.
Pela manhã estava com os olhos
inchados. Molhado como um pinto na chuva. – E aí Vado dormiu bem? – Dizer o
que? Afinal não inventei? Não gastei o que não podia para ter a rede? Sorri
azedo para os patrulheiros meus amigos. Eles sabiam o que eu tinha passado. Mas
me tratavam seriamente e foram até gentis pela manhã me deixando no campo de
patrulha e foram atrás de um quati que Cabeludo disse ter encontrado a pista.
Não dei de bandeira, mas dormi sono solto ali na grama. Não vi mais nada. Eles
voltaram algumas horas depois com o quati pendurado em um bastão. Perdi esta
caçada e perdi muito mais, perdi a vontade de dormir outra vez em uma rede.
Foi a primeira e última vez.
Nunca mais arrisquei a tentar dormir em uma rede. Não era para mim. Eu a levava
sempre, mas para forrar a barraca. Uma rede como forro? Pois é. Tenho duas em
minha casa, às vezes dou uma cochilada, mas nada mais que isso. Eu ainda gosto
dela para sentar deitar e tirar uma soneca por pouco tempo. Mas vá lá dormir em
um acampamento de quatro ou cinco noites com o frio a gelar o esqueleto? Deixo
para meus amigos escoteiros nortistas. Eles são bons nisto. Sei que a rede é um
quebra galho para quem gosta. Nos barcos dos Rios Amazônicos ou não a rede está
sempre presente. Até hoje fico pensando porque não acostumei. Mas eu dormia
gostoso no chão duro, nas pedras, em cima de pontes, em trilhas, em capim
meloso, braquiária, colonião, no meio das samambaias, ou seja, lá o que for.
Que chovesse canivete. Mas na rede? Nunca mais!
Nenhum comentário:
Postar um comentário