Lendas Escoteiras.
Micoçar o Charreteiro e o Comissário Escoteiro Viajante.
(uma
história baseada em fatos reais)
Tem dias
que a gente fica assim meio “paradão”, vontade de fechar os olhos e não fazer
nada. E o pior é que nestes dias as lembranças surgem e até a gente dá boas
risadas com o passado. Micoçar tinha uma charrete. Transportava pessoas. Naquela
época eram chamadas de “freguês”. O termo cliente surgiu tempos depois. Se não
me engano eram uns vinte charreteiros. Viviam disto. Quase não existia taxi na
minha cidade. Eles eram educados. Na estação da estrada de ferro formavam uma
fila educadamente e ninguém atravessava o outro. Eu nos meus dezesseis anos
conhecia todos eles. Micoçar era o mais conhecido por oferecer rosas às moças
que alugavam sua charrete.
Um dia
ele apareceu na sede Escoteira. Na sua charrete um “freguês”, ou melhor, Chefe
Escoteiro. Desceu e garboso se apresentou: - Sou o novo Comissário Escoteiro
Viajante nesta região. Chame seu Chefe. Caramba! Nosso Chefe era o Chefe João.
Só ia a sede uma vez por mês. Sargento da policia militar. Gente boa. Um
segundo pai para mim. Mas nossas reuniões não são como hoje. Sem aqueles
programas de Bandeira, oração, inspeção, chamada, jogos. Éramos duas patrulhas sêniores
a Gavião e a Elefante. Só bem mais tarde foram alterados os nomes de patrulhas
seniores para pessoas ou locais históricos. Não sei se o que fazíamos era o
certo, mas dos treze seniores só um tinha entrado como escoteiro os demais
vieram dos lobinhos. Romildo Monitor pediu ao Chiquinho para leva-lo a casa do
Chefe João.
À tarde
daquele sábado fomos chamados a casa dele. Ele estava sério. - O Comissário
quer fazer uma reunião para mostrar como se faz. Disse que o que viu vocês
fazendo estava errado. Exigiu que eu estivesse presente. Se não fosse Escoteiro
eu teria mandado prendê-lo. Arrogante o moço. Eu não vou, mas vocês todos devem
ir. A reunião ficou marcada para domingo pela manhã. Em frente à sede e atrás
do Cine Pio XII. Havia um campinho de futebol onde nos reuníamos. Ele queria a
tropa Escoteira, mas ela estava acampando na Caverna do Macaco próximo ao Rio
Doce. No domingo lá estávamos. Ressabiados. Não sabíamos o que ele ia aprontar.
Chegou como sempre com o Micoçar. Ele alugava a charrete pelo dia inteiro.
Apresentou-se a nós – Sou Chefe Escoteiro do grupo tal. Como hoje viajo muito
como representante comercial (conhecíamos como caixeiro viajante) fui nomeado
Comissário Viajante para ensinar aos grupos da minha área como fazer escotismo
e exigir o registro de cada um de vocês!
Assim ele
começou a reunião. Tudo nos padrões que hoje conhecemos. Eu mesmo dei muitas
sessões em cursos falando sobre isto. Não estava errado. Mas aprontou uma
correria que nos deixou perplexos. Queria a todo custo fazer uma competição
entre nós. Éramos amigos. Nunca gostamos disto. Nenhuma Patrulha era mais que a
outra. Até ai tudo bem. A missa acabou e um mundão de gente ficou ali nos
olhando. Nesta hora ele resolveu cantar uma canção. Hoje muito apreciada e até
adoro cantar. Mas naquela época? A Piaba. Sai, sai, sai oh piaba saia da lagoa.
E quem entrava na roda dava uma umbigada e tinha que rebolar. O povo todo em
volta dando risadas. Nós vermelhos de vergonha. Na minha vez entrei rebolei um
pouco e sem querer olhei para o Micoçar que ria a valer e gritava baixinho; -
Telirio! Telirio! Para quem não sabe esse coitado (desculpe o termo) era o
único Gay conhecido da cidade. Quer comprar uma briga? Chame o outro de
Telirio. Desisti. Romildo também. O povo morrendo de rir. O chefão gritando: -
voltem todos. Não dispensei ninguém!
Coitado.
E quem obedeceu? Ficamos ali de braços cruzados morrendo de vergonha por ficar
rebolando. O pior que hoje quando lembro penso comigo como eram os tempos
passados. Hoje adoro cantar a Piaba e rebolar. Risos. Ele saiu com Micoçar e
foi direto a casa do Chefe João. Micoçar olhou para trás rindo e falou baixinho
para mim – Telirio! Oh! Vontade de esmurrar o Micoçar. Só sei que ele falou
cobras e lagartos com o Chefe João. Ameaçou fechar o grupo. Ameaçou tanto que o
Chefe João o pegou pela camisa, o arrastou até a Charrete de Micoçar e disse –
Suma! Se aparecer na minha frente de novo deixo você uma semana no xilindró! Dia
seguinte o Chefe João nos contou toda a conversa. Disse que não tínhamos
seniores. Sim um bando de indisciplinados (até certo ponto com razão). Exigiu
que se fizesse um Conselho de Tropa e destituísse ambos os Monitores. Disse que
enquanto não fizermos tudo isto o grupo nunca seria registrado.
Interessante. Nunca fomos registrados. Nosso grupo tinha mais de trinta
anos de atividade e nunca fizemos registro. “Belle Époque”, outros tempos. Uma
Segunda Classe suada. Primeira Classe? Não era para qualquer um. Um orgulho do
caqui curto. Orientar com os ventos, com a lua, com as estrelas e as
constelações. Pescar para comer na hora, armadilhas de pássaros para um bom
assado. Comer mandioca do mato, aipim. Uma sopa de capim gordura. Bananas
verdes fritas na brasa. Bundinhas de Tanajura na panela estouravam como
pipocas. Risos. Nunca desistíamos do escotismo. Tinha pena dos novatos. Quase
não havia vaga. Trinta e seis lobinhos onde só podia ficar vinte e quatro.
Cinco Patrulha de oito onde deveriam ser quatro. Sênior? Este sim. Não era para
qualquer um. Duas Patrulhas só. Cidade pequena. Nesta idade a maioria dos
rapazes estouravam a idade na tropa e tinham de trabalhar. Serem aprendizes.
Não existia a Semana Inglesa. (parar aos sábados ao meio dia).
Outro escotismo? Pode ser. Escotismo do
campo. Sem chefes. Só os monitores indo e vindo. Viver na natureza. Olhando as
flores desabrocharem. Colocando os pés na água fria e cantar baixinho – Ah! Que
gostoso! Olhar o sol caminhando para o oeste e dizer – É para lá que vamos!
Hoje não dá mais. GPS, ele lhe mostra tudo. O Chefe ali com você. Alguns
fazendo tudo. Você não precisa pensar. Nem calcular mais se precisa. O Google
lhe dá as respostas de tudo. Tabuada? Ficou na história. Um celular ou um
smartphones para quando der uma parada na jornada entrar no Facebook. Ver os
e-mails. Isto sim é moderno. Olhar os pássaros? Os animais? Descobrir novos
caminhos? Quem sabe olhar a abóboda celeste e descobrir as estrelas? Ver um
cometa riscando os céus e saber de qual constelação estavam vindo ou indo? Nada
disto. Tudo mudou e para melhor. Nesta época moderna não cabe mais um Romildo,
um Jessé, um Taozinho um Israel ou mesmo um Micoçar ou eu mesmo. Belos taxis
hoje. Uma charrete só como peça de museu.
E sabem? Eu e Micoçar anos depois nos tornamos grandes amigos. O
tal Comissário alugou sua charrete por dois dias e não pagou. Foi embora e deu
o cano. As patrulhas fizeram uma “vaquinha” e pagaram em suaves prestações. Sua
charrete me levou a belos lugares por vales e rios desconhecidos. Charretes!
Também foram engolidas pela modernidade. Pelos novos tempos!
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