Uma linda historia escoteira

Uma linda historia escoteira
Era uma vez...

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Rosas brancas e perfumadas para Dona Noêmia.



Lendas escoteiras.
Rosas brancas e perfumadas para Dona Noêmia.

                      Ela morava bem no final da minha rua. Sua casa tinha fundos para o Rio Mimoso. Lembro que no final da cerca havia um belo pesqueiro. Mas ninguém tinha coragem para pescar ali. No quintal havia pés de manga, goiaba e cheio de cana Caiana. Na frente de sua casa centenas de rosas brancas. Só rosas brancas. Porque não outras cores ninguém sabia. Enfrentar o olhar de Dona Noêmia? Nunca. Um medo danado. Não era só eu e sim a cidade inteira. Morava sozinha, acho que tinha uns cinquenta ou sessenta anos, não sei. Diziam que era viúva, mas ninguém conheceu seu marido. No Grupo Escolar Mascarenhas de Moraes ela era a diretora. Alí ninguém dava um pio. Respeito é bom e eu gosto ela dizia. Todos entravam em silêncio e saiam calados. Onde ela passava se fazia silencio. Alguns adultos diziam – Boa tarde Dona Noêmia. Ela olhava e seus olhos pareciam sair chamas de fogo.

                    A escoteirada passava longe. Os lobos endiabrados ouviam sempre da Akelá Maísa – Querem que chame Dona Noêmia? Quem fala muito paga pecado, assim dizia minha mãe. Chefe Onofre naquele sábado disse que infelizmente ia mudar de cidade. Estava tentando achar alguém para ficar no seu lugar. A tropa ficou chorosa. Todos gostavam dele. A semana inteira o comentário correu em todas as patrulhas. Fazia-se reunião na Touro, nos Morcegos, na Águia e durante o dia na loja do Martinho. Seu filho da Raposa trabalhava com ele. – Quem seria o novo Chefe? Será o Nonato pipoqueiro? O Sacristão Isaias? Ou o Professor Clementino? Ninguém sequer imaginava. O jeito era esperar o sábado.

                   Interessante, uma hora antes todos estavam na sede. Nem nos cantos de Patrulha foram. Estavam a espreita na porta da sede, no portão e vi dois apinhados em um abacateiro enorme olhando a rua da sede. Chefe Onofre chegou sozinho dez minutos antes do horário. Chamou para a bandeira.  Ninguém com ele. Um frenesi corria de um para o outro. Depois do cerimonial fizemos um jogo estupendo. E assim a rotina da reunião continuou. Até esquecemo-nos do Chefe novo. Quem sabe ele desistiu e vai ficar conosco? A surpresa veio no arreamento. – Chefe Onofre assumiu uma pose de “pobre coitado” e apresentou o novo chefe. Ou melhor, a nova Chefe. Dona Noêmia! Incrível! Ninguém estava acreditando. Ela chegou séria com seu cabelo branco amarrado em um coque, um chalé em cima de uma blusa de manga comprida marrom, uma saia azul simples abaixo do joelho e um sapato aberto em cima de uma meia fina que parecia tirada do fundo do baú. Nunca em minha vida olhei para Dona Noêmia. Aquele foi o primeiro. Um medo danado. Era magra. Magra mesmo. Um palito em pé. Alta pelo seu porte. Nariz afilado pontiagudo, uma boca pequena e entre o nariz e a boca um bigode ralo.

                   A cidade em peso não acreditou. Ninguém acreditava. Ela só disse oi e que nos veríamos na próxima reunião. Bragg! Que medo. Achei que ninguém ia aparecer na reunião. Até “sapo de fora” estava lá para ver. Ela chegou. Deus do céu! De uniforme caqui calça curta abaixo das canelas secas, sem o lenço e um chapéu que parecia ser maior que sua cabeça. Dirigiu o cerimonial com perfeição. Depois foi até o meio da ferradura, fez a saudação, disse a Promessa colocou o lenço e virou para tropa dizendo – Confiem em mim como eu irei confiar em vocês. Foi o início. Chamou os Monitores. Falou com eles por cinco minutos. Vou dizer uma verdade foi a melhor reunião de tropa Escoteira que já participei. Onde ela aprendeu? Era Escoteira? Onde? As mulheres não só eram autorizadas na Alcatéia? Um mistério.

                   Dois anos com a Chefe Dona Noêmia. Ninguém tirava o dona. Um medo danado. Mas aos poucos fomos aprendendo a admirá-la, a gostar dela. Uma noite em um Fogo de Conselho ela nos contou uma bela história. De uma menina perdida cuja mãe morrera e ela não tinha ninguém. Sua luta, sua vontade em acertar, criou em redor de sí uma aureola de rigidez, para que ninguém pudesse aproveitar. Uma história linda e triste. Só mais tarde é que a história se explicou para mim, era a história dela. A tropa passou a amar a Chefe Dona Noêmia. Todos tinham a maior admiração. Antes poucos sorrisos agora em profusão. A cidade não entendeu nada. Ainda no Grupo Escolar e entre seus alunos hoje crescidos o medo existia. Na tropa adorada pelos escoteiros.

                Dois anos e quatros meses de felicidade na tropa Escoteira. Cheguei a tirar minha Primeira Classe. Pensava triste quando fosse passar para os seniores. Não queria. Mas sabia que não podia continuar com quinze anos. Um sábado a Chefe Dona Noêmia não apareceu. Preocupação geral. Nunca faltou. Toda a tropa resolveu ir saber o que ouve. Fomos juntos a sua casa. Medo de bater na porta. Mas eu fui. A porta estava encostada. Tremendo abri. Chefe Dona Noêmia caída no chão. Ainda respirava. Pedimos ajuda. Levada ao hospital foi constatado um ataque cardíaco. Ficou entre a vida e a morte dois meses. Na tropa não sabíamos o que fazer. A Corte de Honra se declarou em sessão todos os sábados. Numa quinta Chefe Dona Noêmia se foi.

               O escotismo para mim nunca mais foi o mesmo. Mesmo nos seniores uma saudade “danada” de Chefe Dona Noêmia. Ainda lembro até hoje o mutirão que fizemos a procura de rosas brancas para suas exéquias. Nunca vi tantas em seu tumulo. Todos os escoteiros acharam que eram suas preferidas. Ate hoje uma vez por mês ainda vou lá. Em frente ao seu tumulo coloco um buquê de rosas brancas. Dou um sorriso. Na minha mente faço uma oração. A única que aprendi e que me disseram ser Escoteira.
"Senhor, ensina-me a ser generoso, a servir-te como mereces, a combater sem temor das feridas, a dar sem contar, a trabalhar sem descanso. A sacrificar-me sem esperar. Outra recompensa, que há de saber que faço a tua santa vontade”.

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