Uma linda historia escoteira

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Era uma vez...

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Memórias do Livro da Jangal A embriaguez da primavera


Memórias do Livro da Jangal
A embriaguez da primavera

Dois anos depois da morte de Akelá na grande luta com os dholes, Mowgly completou 17 anos. Parecia mais velho porque o intenso exercício, a forte alimentação e os banhos frequentes lhe haviam dado força e desenvolvimento acima da idade. O povo da Jângal, que já o temia pela astúcia, passou a temê-lo pela força.
Um dia estavam Mowgly e Bagheera na encosta do morro frente à Waiganga. Era o fim do inverno. Sentado, Mowgly contemplava o vale semi-desperto. Um pássaro lá embaixo trinava as primeiras notas, ainda incertas, do canto que iria entoar na primavera. Embora esse canto ainda fosse só um ensaio, a pantera reconheceu-o.
-Eu não disse que o tempo das falas novas vem próximo? Relembrou ela. É Ferao, o pica-pau escarlate. Ele não esqueceu. Ora, eu também preciso recordar o meu canto e pôs- se a ronronar para si própria.

– Não há nenhuma caçada para hoje, observou Mowgly.
– Irmãozinho, estarão teus dois ouvidos tapados? Isto que canto não é palavra de caça, mas canto que quero ter pronto para a primavera.
– tinha me esquecido. Reconheço muito bem a chegada das falas novas, estação em que tu e os outros correreis para longe, deixando-me sozinho, respondeu Mowgly queixoso. Vós debandais e eu, Senhor da Jângal, tenho que viver sozinho.
Até aquele ano Mowgly se deleitara com o retorno das estações. Era ele quem, antes de todos, descobria o primeiro olho da primavera e as primeiras nuvens da estação. Sua voz era ouvida em todos os lugares, a fazer coro com os outros animais. Como para todos os outros, a primavera era para ele o tempo de correr, só pelo prazer de correr do anoitecer ao amanhecer e voltar ofegante, rindo-se, cheio de flores raras.
O povo da Jângal está constantemente ocupado na primavera; Mowgly via-os sempre rosnando, uivando, gritando, piando , silvando, conforme a espécie de cada um. Suas vozes mostram-se diferentes então; e por isso a primavera no Jângal é chamada o Tempo das falas Novas.

Mas naquela estação o humor de Mowgly estava mudado, quando tentava responder algum animal as palavras embaraçavam-se-lhe nos dentes, uma sensação de pura infelicidade o invadiu da cabeça aos pés.
– Comi bem, disse o rapaz a si próprio, bebi bem, minha garganta não arde nem aperta.
Mas tenho o estômago pesado e tratei mal a Bagheera e outros. Ora me sinto quente, ora frio; ora nem quente nem frio, mas apenas furioso contra não sei que. Ah-ah! É tempo de dar minha carreira. Esta noite cruzarei as montanhas; sim darei uma corrida de primavera até os pantanais do norte, ida e volta. De muito que caço sem esforço, isto me enerva.
Como não encontrou nenhum de seus irmãos lobos para correrem juntos, Mowgly saiu sozinho, aborrecido por isso.
Assim correu ele aquela noite, ás vezes gritando, ás vezes cantando; correu até que o cheiro das flores o visou que estava próximo dos pantanais e longe, muito longe do seu Jângal. Avistou uma estrela bem baixa e olhou pelo canudo da mão.
– Pelo touro que me comprou é a flor vermelha, a flor vermelha que deixei pra trás de mim quando me mudei para a alcatéia de Seoni. Agora, que a vejo de novo, dou por fim a minha corrida.

Mowgly correu descuidadamente pela relva úmida até alcançar a cabana de onde vinha à luz.
Uns cães latiram. Ele emitiu um profundo uivo de lobo que fez os cães calarem. A porta da cabana abriu-se e uma mulher espiou no escuro. Dentro, uma criança começou a chorar.
– Dorme, disse a mulher. Foi algum chacal que uivou para os cães.
Escondido nos arbustos, Mowgly tremeu. Aquela voz, ele a conhecia. Mas para melhor se certificar, gritou baixinho, surpreso de ver como a língua dos homens lhe vinha fácil:
– Messua! Messua!
– Quem chama? A mulher indagou com voz trêmula.
– Nathoo! Respondeu Mowgly, pois fora esse o nome que lhe dera Messua quando o encontrou pela 1ª vez.
– Vem meu filho
Ela o acolheu, deu-lhe de beber e comer e apresentou-lhe o irmãozinho.
Cansado Mowgly deitou-se e mergulhou em profundo sono.

Quando acordou Messua sorriu e serviu-lhe outra refeição.
Nesse instante irmão Gris chamou-o lá fora. Era hora de ir. Messua pôs-se ao lado de Mowgly humildemente ele era realmente um Deus da Jângal, mas quando o viu abrir a porta para sair, a mãe que havia dentro dela a fez abraça-lo várias vezes.
– Volta outra vez, repetiu Messua. De dia ou de noite, esta casa estará sempre de porta aberta pra ti.
A garganta de Mowgly apertou-se. Sua voz parecia como que arrancada à força quando respondeu: Sim, voltarei!
-E agora, murmurou depois que saiu, tenho minhas contas a ajustar contigo, irmão Gris. Por que vós quatro não viestes quando vos chamei, há tanto tempo?
– Tanto tempo? Foi ontem, eu... Nós estávamos cantando no Jângal os novos cantos, porque o tempo das falas novas é chegado. Não te lembras?
-É verdade, é verdade...
E logo depois dos cantos, segui teu rastro. Passei à frente dos outros e vim até aqui. Mas, ó irmãozinho, que te aconteceu que estás de novo comendo e dormindo na alcatéia dos homens?

Se tivesses vindo quando te chamei, isto nunca se daria, respondeu Mowgly, apressando o passo.
E agora como será?
Perguntou o lobo.
Mowgly ia responder, quando uma mocinha trajada de branco surgiu no caminho que levava.
À aldeia. Mowgly segui-a com os olhos por entre os talos de milho até que seu vulto se perdeu ao longe.
-E agora? Agora não sei... Respondeu finalmente, suspirando. Porque não vieste quando te chamei?
Nós te seguimos, murmurou o lobo. Nó te seguimos sempre, exceto no tempo das falas novas.
-E me seguireis na alcatéia dos homens também?
-Não o fizemos na noite em que os de Seoni te expulsaram do bando? Quem te despertou quando dormias nas roças?
-Sim, mas me seguireis de novo.

– Não te segui eu esta noite?
– Mas me seguireis sempre, sempre, sempre e outra vez, outra vez e outra vez, irmão Gris?
O lobo calou-se por uns instante. Quando abriu a boca foi para dizer a si próprio:
-A pantera negra falou verdade...
E disse que...
... Que o homem volta sempre para o homem, no fim Raksha, nossa mãe, também disse.
E Akelá também na noite do ataque dos Dholes, acrescentou Mowgly.
E também Kaa, a serpente da rocha, que possui mais sabedoria do que todos nós.
-E tu irmão gris, que disses tu?
Eles já te expulsaram uma vez. Eles te feriram nos lábios com pedra. Eles mandaram Buldeo matar-te. Eles queriam lançar-te na flor vermelha. Tu e não eu, disseste que eles eram muito maus e insensatos. Tu, e não eu, eu sigo meu próprio povo, foste admitido no Jângal por causa deles. Tu, não eu compuseste cantos contra eles, ainda mais amargos que os nossos contra cães vermelhos.

– Para! Que estás dizendo?
O lobo gris ficou uns instante calado, depois falou:
– Filhote de homem, senhor da Jângal, filho de Raksha, meu irmão de caverna: embora eu fraqueie nas primaveras, o teu caminho é o meu caminho, o teu antro é o meu antro, a tua caça é a minha caça e a tua luta de morte é a minha luta de morte. Falo por mi e pelos outros três. Mas que irás dizer ao Jângal?
Bem pensado. Vai e reúne o conselho na Roca, que quero dizer a todos o que tenho no coração, mas talvez não compareçam: no tempo das falas novas todos esquecem de mim...
– Só isso? Perguntou o lobo Gris, pondo-se em marcha.
Em qualquer outra estação aquela novidade teria reunido na Roca o povo inteiro do Jângal; mas era o tempo das falas novas e andavam todos dispersos, caçando, matando. Para um e para outro, corria o lobo Gris com a nova:
– O senhor do Jângal volta para os homens! Vamos a Roca do Conselho!
E ruidosos e felizes os animais respondiam:
– Retornará nos calores de verão. Vem cantar conosco.
– Mas o senhor do Jângal volta para os homens, repetia.

– E daí! O tempo das falas novas perde alguma coisa com isso?
Desse modo, quando Mowgly, de coração pesado chegou à Roca, onde anos atrás fora trazido ao conselho, apenas encontrou lobos irmãos, Baloo, que já estava quase cego e a pesada Kaa enrodilhada sobre a pedra de Akelá, ainda vaga.
– Termina então aqui o teu caminho, homenzinho? Perguntou a serpente, logo que Mowgly se sentou. Grita o teu grito! Somos do mesmo sangue, eu e tu, homens e serpentes!
– Porque não morri nas garras dos dholes, gemeu Mowgly. Minha força esvaiu- se e não foi veneno. Dia e noite ouço um passo duplo no meu caminho. Quando volto à cabeça sinto que alguém se esconde atrás de mim. Procuro por toda parte atrás dos troncos, atrás das pedras, e não encontro ninguém. Chamo e não tenho resposta, mas sinto que alguém me ouve e se guarda de responder. Se me deito, não consigo descanso. Corria corrida da primavera e não sosseguei.

Banho-me e não me refresco. O caçar enfada-me. A flor vermelha está a ferver em meu sangue.
Meus ossos viraram água. Não sei o que...
– Para que falar? Observou Baloo. Akelá disse que Mowgly levaria Mowgly para a alcatéia dos homens outra vez. Também eu o disse, mas que ouve Baloo? Bagheera, onde está Bagheera esta noite? Ela também sabe disso, é da lei.
– Quando nos encontramos nas Tocas Frias, homenzinho, eu já o sabia, acrescentou Kaa.
Homem vai para homens, embora o Jângal não o expulse.
– A Jângal não me expulsa, então? Sussurrou Mowgly.
O irmão Gris e os outros três uivaram furiosamente:
– Enquanto vivermos ninguém ousará...
Mas Baloo interrompeu:

– Eu ensinei-lhe a lei, disse. A mim cabe falar, embora meus olhos não vejam a pedra que está perto, enxergam tudo que está longe. Rãzinha toma teu trilho, faz teu ninho com esposa do teu próprio sangue e de tua raça; mas quando necessitares pata, olho ou dente, lembra-te, senhor do Jângal, que todo o Jângal acudirá o teu apelo.
– Também o Jângal médio estará contigo, disse Kaa. Falo por um povo muito numeroso.
– Ai de mim! Exclamou Mowgly em soluços. Eu não sei o que sei! Não vou, não vou, não quero ir, mas sinto-me arrastado por ambos os pés. Como poderei deixar de viver estas noites do Jângal?
– Ergue os olhos, irmãozinho, disse Baloo. Não há mal nisso. Quando o mel está comido, abandonamos os favos.
– Depois que soltamos a pele velha, não podemos vestir de novo, ajuntou Kaa. É da lei.

– Ouve querido de todos nós, disse Baloo. Não há aqui, nem haverá palavra que te detenha entre nós. Ergue os olhos! Quem ousará interpelar o senhor do Jângal? Eu te vi brincando no pedregulho, lá embaixo, quando não passava de pequenina rã; e Bagheera, que te comprou pelo preço de um touro gordo, viu-te também. Daquela noite do “Olhai, olhai bem ó lobos!”, só ela e eu restamos de testemunhas; Raksha, tua mãe adotiva, está morta, teu pai adotivo está morto; a velha alcatéia daquele tempo não existe; tu sabes o fim que teve Shere-Kahn e viste Akelá acabar entre os dholes, que nos teriam destruído se não fosses tu. Só vejo ossos, velhos ossos.

Hoje não é o filhote de homem que pede licença a sua Alcatéia, é o senhor do Jângal que resolve mudar de caminho. Quem pedirá contas ao homem do que ele quer ou faz?
– Bagheera e o touro que me comprou! Respondeu Mowgly. Eu jamais...
Suas palavras foram interrompidas por um rumor nas moitas próximas. Lépida, forte e terrível como sempre, Bagheera acabava de saltar para dentro do grupo.
– Pelo que acabas de dizer, disse ela, estirando o corpo, não vim. Andei em caçada longa, mas agora ele está morto na relva, um touro de dois anos, o touro que te vai libertar irmãozinho!
Todas as dívidas assim ficam pagas. Além disso, minha palavra é a palavra de Baloo.
A pantera lambeu os pés de Mowgly.
– Lembra-te que Bagheera te ama, disse ela por fim, retirando-se num salto. No sopé da colina entreparou e gritou: Boas caçadas em teu novo caminho, senhor da Jângal! Lembra-te sempre que Bagheera te ama.
– Tu a ouviste, murmurou Baloo. Nada mais há a dizer. Vai agora, mas antes vem a mim.
Vem a mim, ó sábia rãzinha!
– É difícil arrancar a pele, murmurou Kaa, enquanto Mowgly rompia em soluços com a cabeça junto ao coração de urso cego, que tentava lamber-lhe os pés.

– As estrelas desmaiam, concluiu o lobo Gris, de olhos erguidos para o céu. Onde me aninharei doravante? Porque agora os caminhos são novos...


5 comentários:

  1. Linda estória! Sempre me emociono ao lê-la! Obrigado! SAPS Akelá Emerson GEJA 11º DF

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  2. Fui designada para contar a história da Embriaguez da Primavera para nossos lobinhos que esse mês vão para a Aldeia dos Homens, pesquisando um bom resumo da história me deparei com o Blog. Parabéns a todos os envolvidos... Mais uma vez emocionada e agradecida em participar desse maravilhoso movimento. SAPSMP

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