Uma linda historia escoteira

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Era uma vez...

terça-feira, 9 de outubro de 2012

O Selvagem das Terras Altas.



Evitar o perigo não é, a longo prazo, tão seguro quanto expor-se ao perigo. A vida é uma aventura ousada ou, então, não é nada.

O Selvagem das Terras Altas.
A história do Cacique Capotira. O Selvagem da Cabeça Branca.

                Se havia algum que me deixava deprimido era não poder fazer alguma atividade que por um motivo ou outro pensei em fazer. Nunca em minha vida tive medo de enfrentar a estrada, as matas, campinas, os rios estreitos e largos, as cachoeiras, as corredeiras infernais e até as mais altas montanhas. Deliciava-me quando conseguia conquistar cumes imensos, atravessar rios caudalosos seja de que maneira for descendo corredeiras ou mesmo encontrar com o imponderável pela frente era motivo de orgulho. Não sei quantas vezes passei por isto. Medo? Um pouco. Muitas vezes “molhei as calças” e não me envergonho de dizer. O que me deixava agora chateado era não encontrar alguém da Patrulha para ir comigo. Estava enfezado. Israel disse que não podia – Bitelô, como vou ficar vinte dias fora? – Tãozinho então – Nem posso pensar nisto Bitelô, meu pai não vai deixar nunca. E assim um por um não encontrei ninguém que topasse enfrentar um desafio novo.

               Tudo começou quando fui cortar o cabelo na Barbearia do seu Praxedes. Era o barbeiro do meu pai há muitos anos. Eu cortava cabelo com ele desde os cinco. Ele sempre soube o que fazer e como era o corte. Estava lá entretido quando entrou um sujeito com um bigode que nunca tinha visto um igual. Enorme. Diria que os lados quase alcançavam ao queixo. Passou um tempo e ele começou a conversar com o seu Praxedes e conversa vai conversa vem disse que morava na Morada do Morto Vivo. Nunca ouvi falar. Seu Praxedes balançou a cabeça. Contou então a história mais incrível que tinha ouvido. Disse que bem longe de sua casa, bem ao norte subindo o Rio Turvo, quem sabe duas semanas a pé, existia uma serra alta, toda tomada por uma imensa floresta. Ninguém ainda tinha entrado nela. Era completamente desconhecida. Um dia um homem todo marcado e sangrando como se tivesse sido esfolado vivo chegou a sua porta pedindo ajuda e socorro. Trataram dele dentro do que conheciam e no quinto dia ele partiu. Quando ia virando a curva da Trilha da Goiabeira gritou – Nunca tentei entrar na Floresta do Diabo! Lá ainda mora o Selvagem da Cabeça Branca. Ele não conversa com ninguém. Ele esfola e mata. E sumiu junto as plantação de figo que tínhamos acabado de plantar.

              Depois não falou mais. Cortou o cabelo aparou o bigode e quando ia saindo o segurei pelo braço. Ele me olhou e vi nos seus olhos faiscarem. Conhecia este tipo de valentia de outras eras quando das minhas brigas eternas e quase desisti de perguntar. – Moço, como faço para chegar na Floresta do Diabo? Ele riu. Pegue o trem. Desça em Baixo Guandu. Suba o Rio Turvo por oitenta quilômetros. Quando avistar uma garganta entre duas montanhas, vá por baixo mais dez quilômetros. Quando ela terminar irá ver uma imensa floresta subindo aos céus e densa por causa do nevoeiro. É lá. Mas menino, nunca vá lá. O Selvagem da Cabeça Branca dizem nunca deixou ninguém vivo e os que conseguiram fugir ficaram com sequelas no corpo morrendo em poucos meses. Virou-me as costas e sumiu na Rua do Sumidouro e nunca mais o vi. À noite minha patrulha tinha marcado uma reunião na sede. Pretendíamos acampar nas férias de julho e poderíamos escolher um bom local e quem sabe fazer as grandes pioneirias que sempre planejamos e não fizemos. Poderíamos ficar oito dias acampados.
  
               Enquanto todos discutiam lembrei da conversa do Homem do Bigode Rastapé que me contou a história fantástica. Contei para a Patrulha. Riram e não deram atenção. Tentei de todo modo motivar a irmos lá. Foi Israel que colocou a questão crucial – Olhe Bitelô, Oitenta quilômetros rio acima, depois mais vinte. Você sabe. Sem trilhas, matas dos dois lados e com corredeiras tem de ser a pé. Pelos meus cálculos não conseguiremos andar mais que vinte quilômetros por dia, e olhe lá. Só aí seriam cinco dias para ir e mais cinco para voltar. Nem sabemos o que vamos encontrar. Claro que na volta uma jangada pode nos trazer mais rápido, mas e então? Subir uma montanha que ninguém nunca subiu? E se for verdade esta historia do tal Selvagem esfolador? Não somos heróis. Nem sabemos o que vamos encontrar.

               Tentei de todo modo motivar a turma. Não estava conseguindo convencer aqueles seniores destemidos. Deram todo tipo de desculpa. Parece que não era a minha Patrulha que não recusava nenhum desafio. Voltei para casa frustrado. No dia seguinte Pedrinho me procurou em casa cedo ainda – Olhe Bitelô, não dormi a noite. Só pensando nesta história do esfolador. Encontrei com o Israel e ele me disse a mesma coisa. Acho que devemos nos reunir hoje na sede e conversar de novo sobre isto. Dito e feito. A Patrulha conversou por horas. No final tudo planejado. Achávamos que quinze dias seriam suficientes. Os seis valentes seniores da patrulha Cascavel iriam entrar em ação novamente. Que nos esperasse a Floresta do Diabo. E que se danasse o Selvagem da Cabeça Branca. Ele ia conhecer uma turma da pesada! A aventura ia começar e que aventura foi meu Deus!

                Seu Josué era o Chefe da Estação da Estrada de ferro. Já nos conhecia. Aproximou-se e perguntou – Para onde vão desta vez? Até Baixo Guandu Seu Josué. E de lá? - Bem vamos tentar chegar até a Floresta do Diabo. Isto é vamos subir o Rio Turvo. – O rio eu conheço, mas esta floresta não. Cuidado com o Rio. Quando menos se espera ele sobe até dois ou três metros do seu nível.  Gente boa seu Josué. O trem parou na plataforma. Subimos na Segunda Classe e logo ele partiu. Seriam por volta de três horas de viagem. Se tudo corresse bem chegaríamos em Baixo Guandu lá pela uma da tarde. Foram preparativos imensos. Nossa ração que estávamos acostumados era de no máximo dez dias. Ração para quinze ou vinte não sei não. Mas achamos que encontraríamos pelo caminho muita verdura, peixes e quem sabe algum animal ou ave para matar a fome e economizar nosso farnel.

                   Éramos seis. Eu, Romildo, Fumanchú, Taozinho, Israel e Pedrinho. A Patrulha estava completa. Todos foram segunda e Primeira Classe quando escoteiros e agora muitos portavam a eficiência II. Não havia pata tenras. Passamos juntos por poucas e boas. Na viagem o espírito era nota dez. Cantamos, contamos “causos”, até umas piadinhas que não podiam ser contadas para os lobinhos. Meio dia e meio avistamos Baixo Guandu. Uma cidade de mais ou menos quinze mil almas naquela época. Hoje não sei. Antes de o trem entrar na estação avistamos o pontilhão do Rio Turvo. Descemos e como sempre atraiamos atenção. Não dava tempo para conversar. Partimos. Um trecho de estrada estadual e logo uma carroçável margeava o rio. Sabíamos que ela iria desaparecer em breve. Dito e feito. Uma mata rala, e logo uma mata fechada. Que dificuldade para dar cada passo. O rio naquele trecho era manso. A tarde veio chegando. Precisávamos de um lugar para arranchar. Sabíamos que não podíamos ficar próximo à margem. Pelos menos uns trezentos metros. As muriçocas nos comeriam vivos. Experiência de outras épocas.

                   A primeira noite foi calma e assim a segunda. Mas cada dia mais difícil ficava a caminhada. Na tarde do terceiro dia avistamos uma cachoeira enorme. Época da piracema. Um espetáculo a parte. Quem já viu sabe como é. Lindo! A luta dos peixes para subir rio acima é algum de espetacular. Escolhemos um belo piau de dois quilos e o Fumanchú nos fez uma gostoso assado de peixe na brasa. No dia seguinte demoramos mais de três horas para escalar a cachoeira. Não foi fácil. No quinto dia achávamos que estávamos atravessando o inferno. Que dificuldade meu Deus! Cada metro mais e mais um emaranhado da floresta. Naquele dia acho que não andamos cinco quilômetros. Se continuasse assim não chegaríamos a tal Garganta. No sexto dia a mata ficou rarefeita. Tiramos o atraso. Na manhã do sétimo dia avistamos a Garganta. Fácil de percorrer. Um gostoso riacho pedregoso e raso com águas límpidas. Na tarde daquele dia avistamos a famosa Floresta do Diabo. Imponente. Grandiosa. Misteriosa. Uma nevoa encobria o seu topo. Resolvemos dormir e prosseguir no outro dia.

                Levantamos cedo. Graças a Deus que durante os sete dias não choveu. Não foi preciso usar as lonas. Dormimos sob as estrelas. Pela manhã após um cafezinho partimos. Não havia como escolher uma local para a subida. Por toda parte arvores gigantescas e vegetação encobrindo tudo. Fomos em frente. Fumanchú nos disse que nossa ração daria para mais quatro dias. Se pudéssemos encontrar alguma caça ou pescar seria bom. Pescar ali não dava. A subida ficou íngreme. Três passos a frente um atrás. Quem sabe encontraríamos algumas frutas silvestres pensava enquanto andávamos. A mata fechada. Muito fechada. Começou a escurecer. Abrimos uma pequena clareira e dormimos, não antes de uma gostosa sopa de batata. Um bule de café nas brasas umas batatas doce e a noite chegou firme. Pegávamos no sono com facilidade.

               Acordei com o dia raiando. Vi o Romildo e o Fumanchú de pé, sem se mexer e olhando firme para frente. Tremi na base. Um índio enorme. Olhe mais de dois metros. Grande e sem ser gordo era descomunal. Cabeleira longa e totalmente branca. Sem barba. Olhos negros fitando-nos. Não disse nada. E agora, seria o tal Selvagem da Cabeça Branca? Vai nos esfolar e matar? Israel e Tãozinho se levantaram. Pedrinho sentou e se assustou. Era o menor de todos. Todos se aproximaram e ficamos juntos. Romildo o Monitor pegou seu bastão. Arma? Que nada, era leve e nem como porrete quebraria o galho. Calças começaram a ficar molhadas. Ele fez um sinal como dissesse – Venham comigo. Fazer o que? Juntamos nossas tralhas e fomos com ele.

                  Gente, o caminho era uma surpresa. Ele nos levou por uma encosta, onde uma trilha mínima e tendo como esteio um cipó enorme, atravessamos. Do outro lado uma pequena ponte pênsil que ele puxou não sei de onde, passamos e chegamos próximo a um platô, enorme. Avistamos algumas Ocas e uns vinte índios nos cercaram. A maioria mulheres e crianças. Ninguém falava nada, ninguém sorria. O tal da cabeça branca nos mandou entrar em uma oca. Enorme. Grande mesmo. Cabia lá toda a tribo isto é pensei que poderia ser uma. Um pequeno fogo no meio e que cheiro ruim. Ruim mesmo. De que seria? Romildo disse que mataram um porco do mato e ele estava em um canto da oca. Só podia ser ele. O tal da Cabeça Branca nos mandou sentar. Todos sentaram. Ele humildemente, o que estranhei começou a falar:

                 - Eu e os demais da tribo estamos pensando o que fazer com vocês. Não gostamos de estranhos. Eles nos fazem mal. Todos que aqui vem nós o matamos ou esfolamos. Um aviso para ninguém vir. Há muitas e muitas luas seus irmãos brancos mataram quase todos da minha tribo. Morávamos próximo a Aimorés, quase junto a Lagoa da Traíra. Éramos de paz. A sua FUNAI nos deu terras e fazendeiros nos tomaram. Uma noite entraram em nossa aldeia. Mataram quase todos. Eu, filho do cacique Lobo Branco, Pontiac filho do bravo Amanaki, Iraci minha namorada na tribo e filha de Caíare estávamos caçando. Quando chegamos vimos todos mortos e os brancos saqueando tudo. Nos escondemos. Levaram os corpos e os enterraram na entrada da Aldeia, mais de cinco quilômetros onde morávamos. Choramos muito. Mais cinco crianças correram até nós. Estavam vivos. Eu tinha dezesseis anos e era o mais velho. Resolvemos fugir.

                - Descobrimos esta floresta depois de dias de viagem pelo Rio Turvo. Achamos que quase ninguém viria aqui. Na Garganta Cajuru montamos um ponto para observar todos que se aproximam. Voces passaram por ela. Vimos todos os seus passos. São meninos como eu era. Sei que vieram por aventura. Eu também fui assim. Hoje somos menos de trinta. Iraci me deu oito filhos. Paramos. Não podemos crescer mais. Um livro sagrado foi escrito. Todos sabem o que diz lá. Aqui temos muita água e fizemos uma represa para criarmos peixes. Temos uma horta com muitas verduras. Conseguimos mudas de cana, de mandioca e de abóbora. É nosso sustento. Não queremos riquezas e aqui sabemos do ouro tão ambicionados por voces. Amanhã vamos decidir seus destinos. Ficarão na Oca de Pontiac. Não saiam de lá.

                 Saiu e fomos levado por Pontiac até sua morada. Custamos para dormir. Pela manhã eu já estava de pé quando uma indiazinha de uns doze anos entrou e disse que o Cacique Capotira (o tal da cabeça branca) nos chamava. Em uma roda de índios nos entregou nossas mochilas e algumas frutas. Disse que podíamos ir embora. Não pediu para ficarmos calados só disse que se contássemos a história da tribo e onde estávamos ele sabia que não iam durar muito. Deu a cada um uma pepita de ouro. – Façam o que quiserem. Pegamos nossas mochilas e partimos com ele a frente. Levou-nos até a Garganta Cajuru. Mostrou-nos muitas piteiras secas. Disse que com oito poderíamos descer o rio facilmente. Quando a corredeira aumentar saiam da água. A cachoeira esta próxima. Partimos.

                  Para dizer a verdade eu chorei. Gostei demais da tribo. Apesar de pouco tempo ficamos orgulhosos em conhecer todos. Cinco dias depois chegamos em Baixo Guandu. Eu, Romildo, Fumanchú, Taozinho, Israel e Pedrinho fizemos um juramento de não contar para ninguém. Foi uma das nossas maiores aventuras. Sempre quando acampávamos a noite em fogo de conselho ou em uma simples conversa ao pé do fogo, rememorávamos com saudades daquela aventura que ficou gravada em nossa mente para sempre. Os anos passaram e eu passei com eles. Há vinte anos atrás encontrei com Romildo. Sei que já foi para o grande acampamento. Disse-me que um dia soube pelos jornais a história da tribo dos Cabeças Brancas. O governo deu a eles as terras e nunca mais foram importunados por brancos.

                   Acampamentos, excursões, grandes aventuras. Elas ficam gravadas para sempre em nossa mente. Assim são os escoteiros. Não sabem se esconder em sede. Partem em buscas de suas aventuras. Seja ela simples, seja ela com grande perigo. Não importa. Eles sabem até podem ir. Saudades de Capotira, de Pontiac, de Iraci e daqueles amigos sinceros que fizemos. Espero que até hoje estejam felizes, pois lá em sua tribo sentiam-se libertos, e só o sol e a lua sabiam como a felicidade fazia parte de todos aqueles Cabeças Brancas. Quem sejam muito felizes. E as pepitas de ouro? Risos. Com ela papai terminou nossa casinha na Pastoril!

O amor vive de repetição. Cada um de nós tem, na existência, no mínimo uma grande aventura. O segredo da vida é reeditar essa aventura sempre que seja possível.

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