Quarto fascículo
- É uma pena que um homem tenha que viver sessenta anos para
adquirir alguma experiência de vida e a leve para o túmulo, cabendo aos que o
seguem começar tudo de novo, cometendo os mesmos erros e enfrentando os mesmos problemas...
Baden Powell (BP)
Tradições, cerimonias, garbo e boa ordem.
- Tarde de sexta feira, céu parcialmente
escuro, temperatura gratificante para mais um encontro com o “Velho”. Para mim,
que admirava sua fidalguia e ao mesmo tempo sua anarquia, era realmente uma alegria
estas conversas, onde minha mente teria que andar a mil pôr hora para
acompanhar o raciocínio estimulante de um homem que viveu o que dizia e
transmitia de uma maneira simples e direta suas experiências do passado.
Naquele
dia eu acompanhava seus gestos lentamente. À medida que o “Velho” enchia o
"fornilho" do seu cachimbo, na mais típica performance inglesa eu me
entusiasmava com o estilo da mais pura tradição do "homem do cachimbo”. O fumo irlandês, tabaco preferido pôr
ele há muitos anos, era transportado em pequenos feixes com um jeitinho todo
especial.
- Tradições? Ah, Ah! Sua tez enrugada
acompanhava o movimento dos olhos e das sobrancelhas já grisalhas, num
movimento sincronizado e sistemático, sempre fixos no tabaco que ia sendo
colocado no fornilho do cachimbo. - Pausadamente, levando segundos e ate
minutos para falar, continuou sua eloquência, minha velha conhecida de muitos
anos de convivência.
- Repare bem num destro - falou - e sua
maneira peculiar de colocar o cinto. Tente compreender o recruta na sua marcha junto
aos veteranos. Vai ser difícil você acompanhá-lo no dia a dia, pois o sol caminha
para o oeste junto ao entardecer. Preste atenção naquele lobinho Pata Tenra no
seu primeiro Grande Uivo na Alcatéia... O “Velho” socava o tabaco de maneira
firme e suave. Não olhava para mim. Seus pensamentos poderiam estar em suas
palavras ou bem longe dali...
- Olhe com muita atenção aquele monitor, com
seu bastão ao chegar à sede para a reunião, - continuou - Veja seus movimentos.
Observe na saudação a sua pose. Veja o garbo. - Com a ponta mais fina do
socador do cachimbo, ele "amaciava” a entrada até o fornilho, para sentir
se o fumo queimaria pôr igual. Piscou os olhos num relance e continuou sua fala
como se estive falando para si mesmo.
- Aquele Antigo Escoteiro, quando vem à sede,
se sente orgulhoso em ver que nada mudou.
O garbo na formatura o inicio das atividades, o hasteamento da bandeira,
a oração, a inspeção, tudo na mesma sequência e metodologia de sua época. Ele
está sentindo o aroma e o sabor das doces recordações do passado.
O “Velho” colocou o cachimbo na boca, ainda
apagado, suavemente. Deu algumas baforadas para sentir que a “piteira” estava
macia e o fluxo de ar aberto. Seus movimentos metódicos e sincronizados pareciam
um ritual de anos e anos de aprendizado. - Ritual, pensei comigo mesmo...
- Ele (o Antigo Escoteiro) relembra com
saudades da velha moeda da Boa Ação. Do nó no lenço que ainda mantém guardado
até hoje. Ouve o Grito de Sua Patrulha e baixinho, acompanha. Do totem, meio
descuidado, mas ali está intacto. Olha ao redor, novas caras, mas com o mesmo
carinho de sempre. Como se fosse sua segunda família, ele sente-se bem naquele
meio.
- Mas “Velho”, dizia eu. - Não é isto que me
trouxe aqui. Tenho dúvidas e procuro algumas respostas, falei. - Ele nem me olhou. Mantinha o olhar fixo no
cachimbo, como se este sim, tivesse alguma importância. Com a mão esquerda, de um modo bastante
peculiar, segurava o mesmo com a outra mão, e com um fósforo aceso, dava grandes
baforadas, ao mesmo tempo em que socava levemente a borda do fornilho. A chama
e a fumaça expelida, iluminou seu rosto e deu para ver melhor seus cabelos
grisalhos, com mechas brancas caindo sobre testa.
Insisti
novamente e retruquei. - Foi isso mesmo, sem nenhuma duvida, o nosso diretor do
Curso Básico da Insígnia Sênior tem outras ideias a respeito quanto as
Tradições, Cerimonias e Garbo. Quando levantei dúvidas a respeito como fazemos
em nosso Grupo Escoteiro, ele foi sarcástico, como se o sistema dele fosse o
certo e não o nosso. E o pior, os alunos riram como se eu fosse de outro
planeta.
- O “Velho” nem piscou. Nada notei de
recriminação ou mesmo superioridade com quem não estava ali presente. Sua atenção estava dirigida a ascender o
cachimbo. Mantinha a chama em circulo, e sentindo que este estava no ponto, se
refastelou na poltrona de vime já gasta com o tempo, deu grandes baforadas,
fechou os olhos e se extasiou com o aroma adocicado expelido em formas de rolos
de fumaça.
- Ele “Velho”, continuei, mostrou o ponto
exato, matematicamente onde fica cada um dos participantes. Como se deve
dirigir-se a bandeira, o local dos assistentes, totalmente diferente do que
fazemos em nosso Grupo Escoteiro! - e olhe. Deu pôr escrito e desenhado, e
assinado. - O “Velho” abriu os olhos lentamente, e falou sussurrando, não dando
para entender se era sarcástico ou se havia sentido em suas palavras.
- “Tudo o que estamos fazendo, são meios para
atingirmos o fim. O fim é a formação do caráter. O Diretor do Curso não esta
errado. Aprendeu assim, faz assim, e talvez não tenha a experiência necessária
para analisar as vantagens desta cerimonia que pode estar dando certo no seu
Grupo de origem. Cheque no presente o que fizemos no passado. Deu certo? Deu?
Para que mudar! Quantos antigos nos visitam e se sentem orgulhosos de
participar de nossa Cerimonia. O importante é sabermos que estamos praticando
cidadania, e estas cerimonias servem para testar e ensinar os nossos jovens
nesta prática”.
Parou de falar, fechou os olhos novamente,
continuou a dar grandes baforadas em seu cachimbo, mantendo aquele aroma
adocicado meu conhecido de muitas e muitas noites junto aquele “Velho”
Escoteiro. Dali para frente, eu sabia que nada mais ouviria dele. Esperei o
delicioso cafezinho da Vovó que apareceu com seu sorriso simpático, que me
fazia esquecer a 'carranca' do “Velho” naquele momento.
Era sempre assim, deixava uma ' pitada' de
duvida nas suas respostas. No fundo eu entendia bem. Mas o tempo é que
mostraria a realidade do certo e do errado. Teria que ver os jovens crescer e
mostrar que o Escotismo praticado daquela maneira tinha ou não sua razão de
ser. Seguindo pela rua deserta, já noite alta, ruminava o quando devemos mudar.
Quem sabe é a mentalidade de certos dirigentes do nosso Movimento.
Eu
não podia decidir sozinho qualquer mudança. Éramos uma equipe no Grupo. Minha
euforia de ' fim' de curso teria que ser mais cuidadosa. Analisava o andamento do Curso e alguns
tópicos importantes. Cada um dos alunos deveria ver suas necessidades dentro de
seu Grupo Escoteiro.
O aroma adocicado do cachimbo do "Velho"
parecia ter grudado em minhas narinas e me perseguia enquanto seguia para minha
casa naquela noite clara e fresca que prenunciava um inverno gostoso.
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